[as mesmas mãos]
Da
mão do tempo colhi experiências:
flores
autênticas com espinhos artificiais.
A
proteção desfigura-se – nada guarda a chuva.
Pingo
tempestades, choro dilúvios
e
o mar da tranquilidade pertence ao vizinho.
Disseram
para livrar-me desses pensamentos,
mas
as ideias enterradas nos pés da massa
[
multiplicaram-me.
Sou
eles, estou neles e agora somos
os mesmos pés e as mesmas mãos.
Na
dança da multidão ganho horários e cartões de compras.
Andar
reto nesse coletivo insano.
Os
meses são demais, mas são poucos os anos.
Um
mapa traçado na face – ainda não é sinal do fim.
Gero
despesas, abomino a TV
e
quando vou às compras volto
com
a sacola cheia de Nada.
A
falta de sentido me causa dor – é melhor
pensar
que sou um esqueleto.
Assistir
um filme, ler um livro e depois dormir.
Ainda
bem que a tenho aqui perto – só assim
para acreditar em existência imediata.
Lá
fora sei que chove ou faz sol – é bem simples mesmo.
Lá
fora sei que quem vai sempre volta – quase sempre.
Aqui
dentro prefiro me preocupar com o
sistema
digestivo das minhas gatas.
Aqui
dentro falamos sobre o futuro,
quem
vai cozinhar e o horário do remédio.
Não
há garantias que nasci em 1981.
Não
há garantias que nasci.
Não
há garantias.
Não
há.
Comunico-me
com pessoas que nunca vi.
Isso
não é desenvolvimento espiritual,
isso
é desenvolvimento tecnológico – Kardec foi um visionário.
Eu
amo a poesia de Drummond
mas
odeio sua voz – eu também odeio minha voz.
Eu
amo a prosa de Clarice Lispector
mas
odeio sua voz – eu também odeio minha voz.
Quando
a tempestade vai embora, eu sopro as nuvens.
Agosto
e setembro passado trouxeram grandes inundações.
Mas
depois me reformei, sou igual à multidão – resiliente.
O
tempo sempre me doa mãos e eu as leio com minha visão turva e limitada.
O
futuro é alquebrado, leva consigo lápides, histórias e resistentes construções.
O
comum fica, fica também o rancor, o coração partido e a multidão dentro de mim.
[a negação da singularidade]
De
onde estamos há chuvas e guarda-chuvas.
Da
face transbordam matérias líquidas.
Do
peito – estrondos enigmáticos.
E
nos fazemos nuvem – cinzenta e carregada.
Abrimos
a janela, fazemos chover e os homens
lá
fora amaldiçoam o nosso milagre.
Pensei
que fosse fácil entender nosso ilusionismo,
[mas há verdade nele.
Só
compreendem a arte falsificada – a verdade não se cria.
Acordamos
cedo, analisamos os classificados:
ninguém precisa de nós – nenhum anúncio,
nenhuma vaga.
Terminamos
o café,
acendemos
mais um cigarro – o quarto fica verde.
Um
poema foi finalizado, a lixeira é mais uma vez presenteada.
Olho
em nossos olhos e me vejo
um
pouco mais leve,
um
pouco mais velha.
O
que fizemos nesse tempo? Chuvas? Tempestades? Cinema Mudo?
Somos
duas em planos distintos – uma ponte atemporal de divisão.
No
passado eu fui você e no presente nos encontramos.
[terapia]
Antes
de tudo você precisa saber umas coisas sobre mim:
eu
não falo nada: nem inglês,
nem
francês
e
muito menos
alemão.
Eu
mal falo com a minha mãe e
já
se completam dezoito meses que
não
ouço a voz do meu pai.
Meus
vizinhos não gostam de mim, dizem que sou
“aquela moça que não fala com ninguém”.
As
pessoas se enfurecem, se doem, ficam magoadas:
“Depois de tantos anos ela
não fala
um simples “olá!” ou “Como
vai você?”
ou pelo menos tenta fazer
que nem aquela canção:
♪
Tanta coisa que eu tinha a dizer,
mas eu sumi na poeira das
ruas... ♫”
Não,
não mesmo! Não nasci para falar.
Não
posso olhar para o vizinho e fingir
que
é importante saber se ele está bem,
se no fundo eu desejo mesmo é perguntar: como
você suporta?
Lisa Alves (1981) é autora de Arame farpado (2ª. Edição -
Penalux, 2018), mora atualmente no Rio
de Janeiro. Faz parte do conselho editorial da revista Mallarmargens, é
co-editora da Liberoamerica (Espanha) e resenha livros para a
revista Incomunidade (Portugal). Tem textos publicados em diversas
revistas, jornais e páginas literárias no Brasil, Espanha, Inglaterra,
Moçambique e Portugal. Tem poemas e contos publicados em doze antologias
lançadas no Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Espanha e País Basco.
Imagens: Henri Cartier-Bresson