terça-feira, 6 de novembro de 2012

mulheres de qualquer tempo

a esfinge

Ofélia tem os cabelos tão pretos
como quando casou.
Teve nove filhos, sendo que
tirante um que é homossexual
e outro que mexe com drogas,
os outros vão levando no normal.
Só mudou o penteado e botou dentes.
Não perdeu a cintura, nem
aquele ar de ainda serei feliz,
inocente e malvada
na mesma medida que eu,
que insisto em entender
a vida de Ofélia e a minha.
Ainda hoje passou de calça comprida
a caminho da cidade.
Os manacás cheiravam
como se o mundo não fosse o que é.
Ora, direis. Ora digo eu. Ora, ora.
Não quero contar histórias,
porque história é excremento do tempo.
Queria dizer-lhes é que somos eternos,
eu, Ofélia e os manacás.

Adélia Prado




***

 

Beleza e verdade

Morri pela beleza, mas apenas estava
Acomodada em meu túmulo,
Alguém que morrera pela verdade,
Era depositado no carneiro próximo.

Perguntou-me baixinho o que me matara.
– A beleza, respondi.
– A mim, a verdade, – é a mesma coisa,
Somos irmãos.

E assim, como parentes que uma noite se encontram,
Conversamos de jazigo a jazigo
Até que o musgo alcançou os nossos lábios
E cobriu os nossos nomes.

Emily Dickinson

 
[Tradução de Manuel Bandeira]



***



Uma história de pescadores

Quando Pedro saiu para pescar e não voltou, pensou que ia morrer. Passou dias inteiros andando na areia, olhando o mar, pedindo pra Iemanjá devolver seu homem. Ela lhe devolveu a jangada. E ficou com o seu amor. Dela, que era a mulher de Pedro.Uma dor tão imensa que mal lhe deixava respirar.

Mas, com cinco filhos pequenos em casa, não dava mesmo pra ficar parada, sofrendo. Tinha que ir à luta. Tratou de arrumar a jangada e partir para pescar também. Naquele fim de mundo, onde só tinha mesmo areia e mar, longe de tudo, só pescando ganharia o sustento dos filhos. Ou arranjando outro marido. Pra perder depois pra Iemanjá. Como sempre acontecia. Isso, ela não queria mais.

Assim, a jangada voltou ao mar com ela e mais duas, irmãs em tudo, inclusive nas dores da perda.

Ah, era feliz ali, no meio do mar, sem nada por perto. Ela, o vento, a vela, a rede, os peixes. E as outras duas. Iguais.

No início, todos os homens da aldeia desacreditavam delas. Onde já se viu mulher pescar de jangada, diziam. Mas logo se renderam às evidências. E passaram a respeitá-las. A ela, mais que todas.

Dia sim, dia não, saíam antes do sol raiar e voltavam à tardinha. As redes cheias. As mãos grossas. A pele crestada de sol. Um brilho especial nos olhos. Uma felicidade secreta no peito. E o cansaço.

Aos poucos, outras mulheres se aventuraram também. Em breve, revezavam-se no cuidado dos filhos. As que ficavam em terra cuidavam das crianças de quem estava no mar. No dia seguinte, estas iam pescar e as outras se encarregavam da meninada.

Uma coisa, entretanto, ela não revelava. Jamais contou a ninguém. Naquela noite, quando Pedro não voltou, prometeu que o mesmo não aconteceria aos seus filhos. Não seriam pescadores pra morrer bestamente, numa noite de vendaval. Isso ela garantia!

Fazia oito anos agora, que perdera Pedro. E que ganhara uma vida sua. Árdua. Dura. Mas sua. Que garantira os filhos na escola. A mais velha, professora, já. Os meninos estudando pra eletricista e mecânico. Os dois menores ainda na escola primária. Gostava de pensar que Pedro ficaria feliz se pudesse vê-los. E que ainda a amaria, escondido, no fundo do mar. Nessas horas, o peito doía de saudade.

Naquela manhã, tinham saído cedo. Dia de vento de agosto. Céu muito azul. Mar meio encrespado. Promessa de peixe. De repente, o tempo mudou. O azul escureceu. O vento virou vendaval. As ondas, altas e enormes. A praia tão distante que nem se via. As companheiras olhavam-se quase em pânico. Teria chegado o dia delas? Não, não se entregariam assim fácil. Não, ela. Tratou de fazer as outras trabalharem em vez de perder tempo chorando.

Foi então que, entre um relâmpago e outro, viu a jangada. Próxima. Flutuando leve. E sobre ela, Pedro. O seu Pedro. Um não-sei-o-quê percorreu-lhe o corpo dos pés à cabeça. Teve vontade de lançar-se ao mar. De mergulhar nos braços do homem que amava. Do seu homem. E que a amava. Tanto. Ainda. Tinha certeza disso, agora. Sempre o soubera.

Nesse instante, quando já quase caía ao mar, percebeu o ardil. A armadilha de Iemanjá. A poderosa e ciumenta Rainha das Águas. Não, não se deixaria levar pela visão do seu amor. Não se deixaria morrer entre as ondas. Era filha de Iansã. E a tempestade lhe daria a força necessária para voltar.

Teve a impressão de que Pedro lhe sorria quando retomou o controle da jangada. E que a tempestade amainava à sua passagem. Não olhou para trás. Não viu se desaparecera, a jangada. O seu homem. Viu apenas que o mar estava novamente calmo e o céu azul e estrelado, quando chegaram à praia. E soube que vencera.

Viveu muitos anos ainda. Saindo antes do sol e voltando com as estrelas. A rede cheia de peixes. Os filhos crescidos. Formados. Às vezes, saíam com ela para o mar. Que tinham jeito pra coisa, os danados.

Nesses dias, quase sempre avistava uma jangada flutuando perto. E via o orgulho nos olhos de Pedro. E ouvia a sua voz lhe dizendo de amor. Mas isso guardava com ela. Como um tesouro. E nunca contou a ninguém.

Márcia Maia


***


Miscigenação

Um bisavô
tinha parte
com o vento.
Durou pouco,
não chegou
aos quarenta.
A bisavó
era de pés
tão fincados
na terra,
que viveu cem.
Um outro
juntou ouro,
fama, poder.
A outra,
por pouco,
quase põe
tudo a perder.
Uma avó,
resignada,
fez filhos
e rezas.
A outra,
decidida,
filhos e
revolução.
Um avô era
poeta.
O outro era
padeiro.
O que no fim
dá no mesmo:
tudo pão.

Silvana Guimarães



[imagens george marks]


3 comentários:

  1. Além de escrever bem, dona Mariza faz boas seleções.

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  2. Gêmela,

    que surpresa linda! Obrigada. Só você pra me colocar entre mulheres tão lindas.
    Um beijo enorme.

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