terça-feira, 3 de setembro de 2019

Três poemas de Noélia Ribeiro








DOMINGO DE PRAIA



Deitado sobre a areia, um
homem aguarda o mar.
Não presume o próprio
deserto porque tem em si
o mar de Sophia.

Sussurra o mar ao seu
ouvido o epílogo da vida.
Dias e horas de rabiscos na
página aberta do diário.

Os banhistas não reparam
a ausência do poeta nem
da poesia. Mais uma vez,
desperdiçam o mar.







A FORMA DA ÁGUA


O amor abissal,
em sua forma genuína
e sob a vigilância
de cavalos-marinhos,
não está ao nosso alcance.
A nós humanos cabem
as chamas da Quimera e a
falsa profundeza do romance.







SEM TETO, SEM CHÃO


À espera do voo,
olhos aguardam no painel de controle
a possibilidade exígua
de comunicação dos signos.

A dor vê-se sob a lupa
da interrogação.

O amor, em sua ilusão,
roga a Cronos
a passagem das horas
em um átimo.

A aeronave e o sonho
resistem a deixar o pátio.






A poeta pernambucana Noélia Ribeiro publicou Expectativa (1982); Atarantada (Verbis,2009), Escalafobética (Vidráguas,2015) e Espevitada (Penalux,2017). Formada em Letras na UnB, tem poemas em antologias e revistas virtuais brasileiras. Em 2017, recebeu da SECULT-DF o Prêmio FAC – Igualdade de Gêneros na Cultura. É sócia da ANE e da UBE-RJ.

Imagens: Max Dupain

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domingo, 1 de setembro de 2019

Dois poemas de Priscila Merizzio








A mão do homem bélico
perverte os animais
conjectura os obuses do dia-a-dia
sanha e afia a navalha
pondo em dúvida o caminho do amor
há também mãos que são limpas
elas tiram os relógios de pólvora
lavam as veias com água pura
seus pulsos estão sempre à mostra
se espalmam ao sol
em concha, recebem a lua
estão em busca da verdade
do halo impecável das abelhas
estas mãos desfazem silêncios
acordam do sono os que despenharam em vida
trançam em suas traqueias uma nova linguagem:
a linguagem da esperança.

estas mãos são herança de Deus
elas perfilam o minúsculo coração das aves,
seus pulmões cantando o verso que salva.






Somos uma torrente de sangue destruindo cidades
escrevemos enquanto esta gente é traficada,
temos à mão a luz do sol, e achamos que isto é pouco
depredamos todo o tipo de vida
quem nos deu este direito?
não somos escritores, não somos poetas
fazemos parte do time das gárgulas
hora a hora nosso canto é ouvido pelos corvos:
que empáfia! achamos que é por nós
se as frutas pudessem, fugiriam de nossos dentes
e as cidades só abraçariam objetos, animais e plantas
mas o homem acha que é por ele que o espaço silencia
e vê tudo como um mistério a ser decifrado
na hora da fome pendura amuletos e dança, dança
tal qual uma galinha sem cabeça, à espera da própria sangria







Priscila Merizzio é curitibana. Tem dois livros de poemas publicados: Minimoabismo (ed. Patuá, 2014), semifinalista do Prêmio Oceanos 2015, e Ardiduras (ed. 7 Letras, 2016). Mestre em Estudos de Linguagens pela UTFPR, com o tema de pesquisa: Matizes surrealistas no poema "O Amor em Visita", de Herberto Helder (2019) e sócia-fundadora do projeto literário Pulmões Versos. Seu próximo livro de poemas, O amor embebedou as feras, está no prelo, pela editora Kotter. 


Imagens: Pinar Yoldas

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Três poemas de Tito Leite








STRAVINSKY


A vida, ainda que hercúlea,
é estreita: não há iluminuras
sem o extermínio de uma estrela.

Em cada ode, o poeta canta
uma morte: como quem recria
uma semente de alegria
no recreio dos segregados.

Rosa primavera sacrificada.
Queremos o insonhável:
a sagração do juízo inicial.






ETERNIDADE


A poesia é avis rara
num mundo raso.

A dúvida faz parte
de cada bago do poema.

O poeta trucida
o coloquial e seus oficiais.

Se o ofício do dia
é um batismo de sangue,

ele não teme as flores
dementes.

Se a lógica dos abutres
aponta para o óbvio,

o poeta agarra-se
ao mito que nunca morre.






POETA

                                  À Silvana Guimarães

Ana gosta
de ficar a sós
com o seu nó
na garganta.

De ficar a sós
com os seus pássaros
nas entranhas.

Se ela rasga
o céu da boca,
a solidão transmuta-se
em poema.






Tito Leite (Cícero Leilton) nasceu em Aurora/CE (1980). Poeta e monge, mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Tem experiência na área de ensino de Filosofia, com ênfase em Filosofia Política, Ética, Filosofia da Ciência e da Tecnologia. Autor dos livros de poesia Aurora de cedro (7Letras, 2019) e Digitais do caos (Selo Edith, 2016). É curador da Revista Gueto.


Imagens: Wendy Titterton, Giuseppe Arcimboldo, linco7n (Google)

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Três poemas de Ana Maria Lopes






ESTILHAÇOS

Enquanto observo os pássaros
Percebo
que mais uma vez
observo os pássaros

Eu, que a eles não desprezo,
prendo-me em asas
em voos, ao abismo

Mas ela – a que observa os pássaros –
pede mais
e pode ser síntese, ser senso, ser cisne
e voar e nadar
em todas as águas
e odores do ar

Há mais estilhaços
nesses espaços
do que aflição e agonia
na Avenida Paulista.






SAÍDA

Quis sair mas
não consegui penetrar o mundo
e descobrir o nome do impossível

torturei maçanetas
e um pensamento úmido
esgarçou os dias

estico os músculos
e espreguiço na tentativa
de alcançar os oceanos

bebo a cãibra
e me desembaraço do abraço

sumir carece de pouca coisa:
que o carnê acabe
que o filho cresça
que o botox devolva o sorriso
e a grama brote

aí sim, poderei cuidar do paraíso.






TANTO FAZ

Preparei você em mim
há muitos anos
num tempo em que não mais se conta

Guardei seus olhos para quando você me esperar
na porta
E não importa se minha mão não existir mais

ou se essas palavras não existirem
como a seita de Ho No Hana Sanpogye

Seu corpo no meu pode ser miragem
talvez viagem das ervas que se encenam o ser

Você em mim lê as linhas do rosto
e o gosto de sal denuncia minhas pegadas no mar

Mas saio pela tarde que arde a 38 graus
sem saber que a vida pode ser uma degola
ou o afogamento num copo de coca-cola.






Ana Maria Lopes é jornalista, poeta e resenhista. Têm três livros de poemas publicados: Conversa com Verso (LGE), Risco (Libris) e Mar Remoto (Maria Cobogó). Participa de várias antologias de poemas e prosa, bem como de e-books. Participa do Mulherio das Letras e integra o Coletivo Editorial Maria Cobogó.

Imagens: Andreas Gursky


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quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Três poemas de Lisa Alves








[as mesmas mãos]


Da mão do tempo colhi experiências:
flores autênticas com espinhos artificiais.
A proteção desfigura-se – nada guarda a chuva.

Pingo tempestades, choro dilúvios
e o mar da tranquilidade pertence ao vizinho.

Disseram para livrar-me desses pensamentos,
mas as ideias enterradas nos pés da massa
                                      [ multiplicaram-me.
Sou eles, estou neles e agora somos
 os mesmos pés e as mesmas mãos.

Na dança da multidão ganho horários e cartões de compras.

Andar reto nesse coletivo insano.
Os meses são demais, mas são poucos os anos.
Um mapa traçado na face – ainda não é sinal do fim.

Gero despesas, abomino a TV
e quando vou às compras volto
com a sacola cheia de Nada.

A falta de sentido me causa dor – é melhor
pensar que sou um esqueleto.

Assistir um filme, ler um livro e depois dormir.
Ainda bem que a tenho aqui perto – só assim
para acreditar em existência imediata.

Lá fora sei que chove ou faz sol – é bem simples mesmo.
Lá fora sei que quem vai sempre volta – quase sempre.

Aqui dentro prefiro me preocupar com o
sistema digestivo das minhas gatas.
Aqui dentro falamos sobre o futuro,
quem vai cozinhar e o horário do remédio.

Não há garantias que nasci em 1981.
Não há garantias que nasci.
Não há garantias.
Não há.

Comunico-me com pessoas que nunca vi.
Isso não é desenvolvimento espiritual,
isso é desenvolvimento tecnológico – Kardec foi um visionário.

Eu amo a poesia de Drummond
mas odeio sua voz – eu também odeio minha voz.
Eu amo a prosa de Clarice Lispector
mas odeio sua voz – eu também odeio minha voz.

Quando a tempestade vai embora, eu sopro as nuvens.
Agosto e setembro passado trouxeram grandes inundações.
Mas depois me reformei, sou igual à multidão – resiliente.

O tempo sempre me doa mãos e eu as leio com minha visão turva e limitada.
O futuro é alquebrado, leva consigo lápides, histórias e resistentes construções.
O comum fica, fica também o rancor, o coração partido e a multidão dentro de mim.






[a negação da singularidade]

De onde estamos há chuvas e guarda-chuvas.
Da face transbordam matérias líquidas.
Do peito – estrondos enigmáticos.
E nos fazemos nuvem – cinzenta e carregada.

Abrimos a janela, fazemos chover e os homens
lá fora amaldiçoam o nosso milagre.
Pensei que fosse fácil entender nosso ilusionismo,
                                                        [mas há verdade nele.
Só compreendem a arte falsificada – a verdade não se cria.

Acordamos cedo, analisamos os classificados:
 ninguém precisa de nós – nenhum anúncio, nenhuma vaga.

Terminamos o café,
acendemos mais um cigarro – o quarto fica verde.

Um poema foi finalizado, a lixeira é mais uma vez presenteada.

Olho em nossos olhos e me vejo
um pouco mais leve,
um pouco mais velha.

O que fizemos nesse tempo? Chuvas? Tempestades? Cinema Mudo?
Somos duas em planos distintos – uma ponte atemporal de divisão.
No passado eu fui você e no presente nos encontramos.








[terapia]

Antes de tudo você precisa saber umas coisas sobre mim:
eu não falo nada: nem inglês,                            
nem francês                            
e muito menos                            
alemão.

Eu mal falo com a minha mãe e 
já se completam dezoito meses que
não ouço a voz do meu pai.

Meus vizinhos não gostam de mim, dizem que sou
“aquela moça que não fala com ninguém”.
As pessoas se enfurecem, se doem, ficam magoadas:

“Depois de tantos anos ela não fala
um simples “olá!” ou “Como vai você?”
ou pelo menos tenta fazer que nem aquela canção:
Tanta coisa que eu tinha a dizer,
mas eu sumi na poeira das ruas...

Não, não mesmo! Não nasci para falar.
Não posso olhar para o vizinho e fingir
que é importante saber se ele está bem,
se no fundo eu desejo mesmo é perguntar: como você suporta?







Lisa Alves (1981) é autora de Arame farpado (2ª. Edição - Penalux,  2018), mora atualmente no Rio de Janeiro. Faz parte do conselho editorial da revista Mallarmargens, é co-editora da Liberoamerica (Espanha) e resenha livros para a revista Incomunidade (Portugal). Tem textos publicados em diversas revistas, jornais e páginas literárias no Brasil, Espanha, Inglaterra, Moçambique e Portugal. Tem poemas e contos publicados em doze antologias lançadas no Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Espanha e País Basco.


Imagens: Henri Cartier-Bresson


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