Ilha
Quando
Helena amadureceu, deixou sua alma numa praia clara, cheia de sol e quase nunca
voltou para ver o ocorrido.A alma se esbaldava: colhia conchas, nadava nua e pescava!
Já bem velha, tomou um enorme navio e, demorando muito, aportou na ilha. Cheia de saudades, sentiu prazer no contato dos pés descalços na areia morna e quis a alma de volta.
Impossível.
Enquanto Helena se espreguiçava calma, a alma subiu num coqueiro alto a valer e se jogou. Para nunca mais.
gomos de tangerina
úmidos
atravessam
céleres, suaves, céleres
céus chumbo imbuídos
de dor
enquanto as torneiras secas
insistem
prestes, côncavas, prestes
mel plúmbeo ressequidas
de cor
passeiam juntos soltos
separadamente
cansam, cantam, cansam
cruéis glúteos entretidos
de amor
as bicicletas surgiam
velozes, sem pilotos, montadas por poemas
fugidios, que se espichavam até a lua.
Serena, impávida, branca e perene.
Derramava-se nos selins, escorrendo e pingando
favos de mel e parrudos bagos de poncã.
tom pífio e quase sumido de uma flauta longa.
Prata fria envolta no calor do assopro,
que balançava os cabelos ruivos
por trás das nucas, nunca vistas nuas.
Endireitando-se com o pé firme nos pedais
melodiosos, um dos poemas voltou a cabeça para frente,
fincado e dolorido.
Gemeu?
Dele, não sei, pingaram ao menos quatro gotas de saliva
amarga e uma redonda de melado marrom.
Entre os dedos, platônicos, três corações
unidos por uma só veia cava.
O descompasso das batidas
combinava com a velocidade da corrente
dos pedais das bicicletas,
desaparecidas entre as nuvens plúmbeas
encharcadas.
silêncio que me afoga
diria palavras melhores
faria dias maiores
sonharia felicidades brancas.
não há tempo entre
palavras suas,ainda que breve.
as pedras das letras caem
pelo chão com estrondos
surdos e me emudecem.
seu eco cessa rápido,
como seca a terra quente
que recebe chuva leve.
só, mas só,
não há comos,nem tempos, ou nada,
senão um mergulho fundo
sem volta, nesse
espesso silêncio em que
me afogo.
Passeio
Zuniam sem parar os pequenos elefantes voadores ao redor da cabeça
enorme de Letícia, que de gatinhas passeava entre as flores do jardim aberto.
Viam-se no alto da cabeleira loira e clara, plena de cachinhos muito perfeitos,
duas antenas pretas, com bolinhas nas pontas, a chacoalhar com o balanço do
engatinhado. Os zunidos perturbavam os diálogos interiores de Letícia, chegando
a superar as vozes alegres de Alice, do Coelho Maluco e da Rainha Má, que
dissentiam sobre a ordem das cartas no jogo de pôquer. Irritação. Letícia
parou, sentou-se sobre as coxas, silenciou as vozes de dentro. Paralisou
qualquer respiro e, mão aberta, acertou a própria testa. Só nesse tapa,
derrubou sete elefantes voadores cor-de-rosa, que escorreram esmagados pela
pele branca da pequena assassina. Os demais, pálidos de medo, voaram para bem
longe, assentando-se de costas para Letícia, na pétala roxa de uma violeta
muito pequenina, uns bons metros longe. Agora sim, pôde ouvir direito o que
vinha de dentro e soube: no pôquer, a última carta é ás.
Marcos Fava é paulista.
Tenta, de muito, alterar o mundo com a palavra. Por isso ensina, julga e
escreve poesia. Bacharel em letras vernáculas, mestre e doutor em direito, é
juiz há dezenove anos.
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