"Na
volta à vida, depois do desmaio, há duas fases: o sentimento da
existência moral ou espiritual e o da existência física. Parece provável
que, se ao chegar à segunda fase tivéssemos de evocar as impressões da
primeira, tornaríamos a encontrar todas as lembranças eloqüentes do abismo
do outro mundo. E qual é esse abismo? Como, ao menos, poderemos distinguir
suas sombras das do túmulo?" In, O
Poço e o Pêndulo - Edgar Allan Poe
- Sente o cheiro, Senhora!
Fresquinho!
- Que
cheiro?
- Alho-poró, Senhora.
Fresquinho!
Foi assim que perdeu o
olfato ou descobriu tê-lo perdido.
Desgraçadamente, ela que mal
se lembrava do cheiro do filho recém-nascido, agora ansiava por um cheiro
qualquer.
Esgotados todos os
tratamentos, resolveu buscar a cura para o mal que lhe afligia por conta
própria, e de maneira grotesca, convém salientar. Empregou-se numa
espelunca imunda, onde, certamente, os piores odores se concentravam.
Incumbida da faxina do lugar, passava os dias retirando das latrinas
entupidas, urina e fezes.
Não aguentou, pois ainda que
lhe faltasse olfato, visão e tato continuavam
intactos.
De volta à vida costumeira,
e sem qualquer ocupação que lhe preenchesse os dias, acabou por adoecer.
Davam-lhe para beber caldos fortificantes, remédios e vitaminas, mas nada
conseguia evitar o definhamento da alma. Ela só queria saber de dormir. E
dormia o tempo todo.
Certo dia, no entanto, foi
despertada pelo cheiro de terra úmida. Não abriu os olhos. Teve medo.
Mexeu os braços e tentou rolar sobre o próprio corpo. Não conseguiu.
Estava encerrada num lugar abafado e estreito. Inflou as narinas e ao
cheiro de terra úmida somou-se o de uma flor conhecida de outros
carnavais. Decidiu não abrir os olhos, porque sabia que, fazendo-o, não
compreenderia os motivos para mais uma, entre todas, fatalidade que a
atingira sem que pudesse escolher.
Aspirou profundamente o
cheiro da pétala que se alojara rente à narina esquerda e pensou a quantos
velórios e enterros havia ido por educação. Viver, para ela, não fora
outra coisa senão uma obrigação árdua e
insuportável.
Um erro fatal a encerrara
numa caixa, mas lhe trouxera de volta o elo que se quebrara em sua
corrente. Poderia debater-se por socorro ou deixar-se conduzir para
qualquer lugar distante de tudo aquilo que sempre lhe parecera tão
cansativo.
O ar tornou-se opresso e o
cheiro, de tão intenso, materializou-se acima de seu corpo. Como um
músculo nervoso, pulsante, transgressor. Ergueu a mão e quase pôde
tocá-lo. E assim ficou, enquanto a consciência se lhe escapava devagar,
devagar, com a mão estendida no ar.
Sorriu e sua boca tinha a
beleza da flor dos mortos.
Deixou-se
levar.
À guisa de ilustração:
consta do acervo de casos de determinado cemitério que, certa noite, um
vigia foi surpreendido por movimentação estranha dentro de uma tumba
recém-fechada. Assustado, chamou os responsáveis que, desejando
tranquilizá-lo, abriram a tumba e lá encontraram um caixão semiaberto e,
dentro dele, a morta em decomposição, virada de lado, em pose
absolutamente diversa daquela em que se encontrava quando foi sepultada. A
família não foi Localizada, tampouco aquele que declarou o
óbito.
mariza lourenço
Bravo! Minha anosmia está se sentindo vingada e... feliz da vida!
ResponderExcluirQUE MEDO! Enterrada Viva. O emparedado.
ResponderExcluirMar avilha, Mar Iza!
ResponderExcluirAmplamente espetacular em fundo e forma, Mariza!
ResponderExcluirMuito bom, mesmo!
ExcluirIntenso. Amei.
ResponderExcluirAsfixiante e intenso. Em seus textos o feminino é quase palpável. Forte e muito, muito bonito. Parabéns!
ResponderExcluirviva!!!
ResponderExcluircaríssimos,
ResponderExcluirperdoem a ausência de agradecimentos aos generosos comentários e leitura de meus textos. como costuma dizer uma grande amiga: ando 'apertada' de costura, sem tempo pra nada. mas agradeço de coração a generosidade das palavras.
beijos.
Estamos sempre nessa corrida, não é Mariza? Mas, sim, você merece cada palavra e muitas mais!
ResponderExcluirgentil como sempre, Alberto.
Excluirbeijo