domingo, 23 de junho de 2013

sem desconto para o livro


SEM DESCONTO PARA O LIVRO 

Preciso de poesia. Ácida poesia que me queime o esôfago e incendeie a razão. Neste ponto em que perdi os limites do bem e do mal, do amor e do ódio, do que quero e do que não, corro o risco de afundar na poça de lama brilhando de bactérias mortas. Foco o brilho. O sol é assim. Tenho entre os dedos um salmo encontrado no banco do vagão. Caiu quando aquela mulher prendeu a bolsa na porta. As palavras latejam como neon enquanto finjo. Escondo-me no quarto de hotel barato sobre o letreiro da boate de quinta de um antigo road movie. Hipnose. Minha carteira. Não trouxe. Deixei-a com outro tempo, comprimido em séculos de menos de uma hora, tempo menor do que o rato gasta para atravessar os riscos da noite, suas sujidades. Tempo mais eterno do que esses gases que me entorpecem. Não posso pedir a vodca barata e olho três insetos, os remendos no lençol. São símbolos do esgarçar do retrato. A poesia é a tábua em que Szymborska viu salvação, sedativo, amnésia, sublimação. Plano sobre as coordenadas. A matéria é falsa. Na cadeira 5A do teatro agora eu desconstruo a história e a espero. A poesia. O texto espeta na mão. Penso em mandíbulas que dilaceram e a moça ruiva de pele de seda, dois lugares à frente e ao lado, sem saber, murmura os nomes que apodrecem o meu fígado. Antes que a bala me atinja, três focos de luz me soerguem. Estou em casa.     

ALBERTO BRESCIANI

Imagem: Desert Road, Guillaume Zuili

11 comentários:

  1. A mulher que prende a bolsa na porta do vagão é personagem de um conto de Vagner Muniz. Não resisti, Vagner.

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    1. Ah, Alberto... Ela gosta de aparecer! E aparecerá algumas vezes por aqui. Está ótima nesse road movie!

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  2. Alberto, mais do que falar sobre o road movie, queria focar um pouco no texto. Você já deve ter percebido, tenho predileção pelos que são curtos e dizem de forma densa. Acredito piamente que nós, os escritores, devemos prestar cada vez mais atenção na necessidade de sermos objetivos. O mundo, infelizmente, caminha para a não leitura. Precisamos captar o leitor rapidamente, temos pouco tempo para fisgá-los, prender sua atenção. Aqui você faz isso soberbamente. Gostei muito e continuo com a impressão que sempre tive ao seu respeito: como escreve bem! Ricardo Ramos Filho.

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  3. Alberto, esse conto é bárbaro e Ricardo já disse tudo, mas eu gostaria de ir além. sim, esse é daqueles textos sobre o qual, eu, seguramente, diria com todas as letras que adoraria ter escrito. é denso, palpável. é um texto em que podemos vestir as roupas das personagens sem nenhum constrangimento, porque, talvez, possamos ser qualquer uma delas. e somos, na verdade.
    'dorei'
    beijo

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  4. É o que eu chamo de talento, sem desconto algum...
    Beijo, poeta!

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  5. Alberto, deslumbrante. Este início me arrebatou:"Preciso de poesia. Ácida poesia que me queime o esôfago e incendeie a razão. Neste ponto em que perdi os limites do bem e do mal, do amor e do ódio, do que quero e do que não, corro o risco de afundar na poça de lama brilhando de bactérias mortas. Foco o brilho. O sol é assim". O resto já foi dito pelo Ricardo e pela Mariza. Concordo. Eu acrescentaria que senti toda a ambiguidade de que somos feitos pulsando ao mesmo tempo. Parabéns, amigo. Adorei também. Beijo.

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  6. Digitar comentários. Mas comentários não há. O texto fala por si. Perfeito. Endosso todos os comentários acima e acrescento que quanto mais o leio, mais admiração eu tenho por você e sua capacidade de dizer. Beijo carinhoso

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  7. Alberto,
    Por sorte o pote de poesias ácidas estava ao alcance de suas mãos. Pra nossa sorte!
    Abraço,
    Morvan.

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  8. Demorei para chegar aqui, sua chamada esteve marcada na caixa de mensagem. Perdoe-me, foram as semanas de trabalho intenso sem poesia, sem leitura, sem ópio, "sem sedativo" para a alma.
    Gostei dessa sua nova viagem, dessa sua hipnose um pouco mais longa e nem por isso menos objetiva.
    Abraço Cida

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  9. Opa! Só hoje vi o texto. Quase passei batido. Mas nada melhor que o tempo para premiar o coração. Sua história/filme bem dirigida, com cheiro de Kerouac e hálito de Bukovski, que gostava mais de vinho e menos de vodka, me trouxe vontade de ler. Vou sair para comprar um livro. Abração.

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