SEM RASTRO DE TEMPESTADES O TEMPO DEVE CONTINUAR BOM
Ao Sérgio Tavares
Depois de sua terceira morte, já não havia espaço na agenda para outra sequência de eventos fúnebres. No limbo que sucedeu à queda da própria altura e evisceração e esquartejamento, restou-lhe enlouquecer - o mesmo que deixar de existir. Degolou tigres e coelhos, devastou bosques de sequoias, cobriu-se de amuletos e salmos cuneiformes. Por hábito e lembrança, iniciou a escavação para as profundezas. Afundava em muco de medo e surto, esfregava as vísceras na terra (já agora não lhe socorriam imobilidade e silêncio). Cumprida sua tarefa em poucos milhões de anos e então ao olhar míope de toupeiras, víboras, roedores e vermes subterrâneos, esbarrou (ao acaso) em restos de azul que subiam em linha vertical. Pontilhavam ali barcos alados - acreditou - e um gancho lhe acertou a cova. Na tontura do que amargara e sentindo o sal de imaginada maresia, rasgou os trapos que trazia e ofereceu magro seu corpo nu ao céu. Com o espanto dos que levam alheia culpa, foi sugado e sugado para cima e para cima e para cima por anjos verdes, multiformes e transparentes. Da pele brotou um rio de poemas e línguas. E o buraco fez-se avesso. Um sinal riscou o horizonte: o avião arrastava faixa anunciando que ressurreições e curas são precárias e instáveis como as dunas, mas valem o espinho sem volta atravessado no fígado. Enquanto duram, são como eclodir, jogar ao sol na praia em qualquer manhã de sábado.
ALBERTO BRESCIANI
Imagem: trabalhando.com
Que beleza, Alberto. Você, com e suas cruéis, vertiginosas, surreais dilacerações e vidências, me parece um Rimbaud da pós-modernidade. E cresce a cada escrito novo. Fico mais e mais orgulhosa de você.
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