segunda-feira, 21 de outubro de 2013

três escritoras

A fiandeira das asas

A velha fiava e era muito velha. Era Finória e tinha o rosto velho feito de pregas.
Mais velha que o tempo, Finória fiava e era velha e tecia o indivisível dos dias e das turvas noites. E não despregava o olho do fio que levava há vidas, a velha. A velha, Finória.
E o terço entre os dedos entrecortando a fiação, dia noite dia noite dia.
Noite.
Fiava o brejo, fiava as almas, fiava a vida, a vida finória. E não tinha fé, não tinha sol, não tinha nada e o que de pior tinha, tinha o tempo, a linha reta e doída, a do passar, tão longo e vivente como a velha.
O brejo abraçava Finória -, olhavam-se nos olhos velhos do silêncio da noite.
E a velha fiava, e desfiava a solidão dos dias. Dependurada naquele ermo das horas, às vezes vagava, vergava até o amanhecer na claridade feroz do arrebol que secava a roupa, espectro quarando no pó dos confins do brejo.
E quando vinha a noite, o escuro do céu se enfeitava com um colar de estrelas luminosas. A velha bebia a própria alma, mezinha rezada um pouco a cada dia.
E a neblina cobriu a casa das Almas naquela noite quando ela ouviu os passos secos no terreiro. Bateram à porta, a velha suspirou aliviada, finalmente era ele. Entrou, sentou e tratou a encomendação. Depois se foi, deslizou silencioso pelo breu do brejo.
Dez dias e a velha fiou uma asa, com mais sete depois e fiou a outra. Com fios de prata do cabelo da noite. Depois fiou o manto amarelo com fios dourados do cabelo do dia.
No décimo oitavo soprou uma aragem, e veloz como o vento a velha avoou levando com ela o brejo. Avoou levando o tempo, levando o vento.
Finória findou fiou o espaço e subiu, sumiu na boca sem dente do mundo.
Ao longe ouvia-se a lamentação de uma carpideira que ia pela estrada:

Uma incelência eu vô rezá agora/Te levanta alma que já é hora/A missa do céu vai sê dit'agora/Uma espada-de-dô/No seu coração passô/Trespassô Jesuis no pés/A sua Mãe sentindo a dô!

[Jussara Salazar]



uma mulher

Por vezes, às seis da tarde, Dolores sentava-se no fundo do quintal.

À sua volta, 12 velas. E as dispunha como os números são nos mostradores dos relógios, as casas num mapa astral, os cavaleiros em torno da távola.

Quando o rádio da empregada tocava a Ave Maira, Dolores fechava os olhos e brincava de ser santa.

Entronizada em altar de grama e formigueiros. Os canteiros de sempre-vivas eram-lhe guirlandas de gratas oferendas. As maltratadas bonecas, sem braços e de olhos vazados, eram-lhe ex-votos.

Muitas vezes, às seis da tarde, Dolores senta-se no fundo do quintal.

À sua volta, esfarrapados lençóis e as marcas indeléveis dos desejos baratos, dispostos como fantasmas que assombram as noites.

Quando o rádio toca o tema da novela, Dolores fecha os olhos e brinca de ser pecadora.

Entronizada em altar de seda e plumas. As cédulas amarrotadas são-lhe parcas oferendas. Vazados olhares e maltratados abraços são-lhe votos de nunca mais.

[Ro Druhens]



o filho da mãe

12 anos de namoro e noivado e ela custou a perceber onde havia amarrado a sua égua. A mãe dele, que se gabava de dizer a verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade, sempre ponderava toda vez que se falava de matrimônio: pra que correr? E avisou: ele tem esse gênio, nasceu sem estopim, mas no fundo, tem coração. No fundo.

Na frente, começou com a cirurgia do nariz, que o incomodava: de perfil, lembrava um mezzo-tucano. O médico aproveitou o ensejo e, em busca de harmonia, aumentou-lhe o queixo com uma prótese de silicone. Em seguida, nova operação tratou de corrigir o desequilíbrio da bochecha. Para isso, foi preciso um lifting. Rugas, flacidez e excesso de pele sumiram no passo do mágico. Não bastou. As sobrancelhas foram destacadas com micropigmentação. O que acentuou os olhos e a necessidade de reduzir as pálpebras. Superiores e inferiores. Neto de cearense, olhar made in japan. As bochechas desiquilibraram-se novamente. Outro lifting e um corte no maxilar, para tirar excesso de osso. Os olhos, outra vez. Mais um recorte nas pálpebras superiores e uma puxadinha nas inferiores. Lentes de contato. A bochecha. Lifting, pálpebras, botox, preenchimento dos lábios com ácido hialurônico. Deu problema, um monte de caroços. Tira tudo. Tenta polimetilmetacrilato. Agora sim. Era outro homem e ela gostava de beijar Angeline Jolie.

A sogra escolheu morrer três horas antes da cerimônia de casamento. O filho só ficou sabendo do óbito depois de sair da igreja, quando a procurou, sob a chuva de arroz. Festa e viagem de lua-de-mel canceladas, direto para o apartamento do casal.

No criado-mudo, ao lado da cama, guardada para sempre num porta-retrato, a foto da primeira comunhão — terninho de nycron, camisa volta-ao-mundo e sapato vulcabrás — que mereceu da mãe o único adjetivo que ela lhe dedicou durante toda a sua vida, em forma de elogio: en-gra-ça-di-nho.

Na primeira noite, olhou os seios da mulher e sucumbiu, a cabeça entre eles, soluçando. Mamãe. Mamãe. Mamãe.

[Silvana Guimarães]


mais no site escritoras suicidas, onde também escrevo.

mariza lourenço
[imagem de kristen anne]

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