A fiandeira das asas
A
velha fiava e era muito velha. Era Finória e tinha o rosto velho feito de
pregas.
Mais velha que o tempo, Finória fiava e era velha e tecia o indivisível
dos dias e das turvas noites. E não despregava o olho do fio que levava há
vidas, a velha. A velha, Finória.
E
o terço entre os dedos entrecortando a fiação, dia noite dia noite
dia.
Noite.
Fiava o brejo, fiava as almas, fiava a vida, a vida finória. E não tinha
fé, não tinha sol, não tinha nada e o que de pior tinha, tinha o tempo, a linha
reta e doída, a do passar, tão longo e vivente como a
velha.
O
brejo abraçava Finória -, olhavam-se nos olhos velhos do silêncio da
noite.
E
a velha fiava, e desfiava a solidão dos dias. Dependurada naquele ermo das
horas, às vezes vagava, vergava até o amanhecer na claridade feroz do arrebol
que secava a roupa, espectro quarando no pó dos confins do
brejo.
E
quando vinha a noite, o escuro do céu se enfeitava com um colar de estrelas
luminosas. A velha bebia a própria alma, mezinha rezada um pouco a cada
dia.
E
a neblina cobriu a casa das Almas naquela noite quando ela ouviu os passos secos
no terreiro. Bateram à porta, a velha suspirou aliviada, finalmente era ele.
Entrou, sentou e tratou a encomendação. Depois se foi, deslizou silencioso pelo
breu do brejo.
Dez dias e a velha fiou uma asa, com mais sete depois e fiou a outra. Com
fios de prata do cabelo da noite. Depois fiou o manto amarelo com fios dourados
do cabelo do dia.
No
décimo oitavo soprou uma aragem, e veloz como o vento a velha avoou levando com
ela o brejo. Avoou levando o tempo, levando o
vento.
Finória findou fiou o espaço e subiu, sumiu na boca sem dente do mundo.
Ao
longe ouvia-se a lamentação de uma carpideira que ia pela
estrada:
Uma incelência eu vô rezá agora/Te
levanta alma que já é hora/A missa do céu vai sê dit'agora/Uma espada-de-dô/No
seu coração passô/Trespassô Jesuis no pés/A sua Mãe sentindo a
dô!
[Jussara
Salazar]
uma mulher
Por vezes, às seis da tarde, Dolores sentava-se no
fundo do quintal.
À sua volta, 12 velas. E as dispunha como os números
são nos mostradores dos relógios, as casas num mapa astral, os cavaleiros em
torno da távola.
Quando o rádio da empregada tocava a Ave Maira,
Dolores fechava os olhos e brincava de ser santa.
Entronizada em altar de grama e formigueiros. Os
canteiros de sempre-vivas eram-lhe guirlandas de gratas oferendas. As
maltratadas bonecas, sem braços e de olhos vazados, eram-lhe
ex-votos.
Muitas vezes, às seis da tarde, Dolores senta-se no
fundo do quintal.
À sua volta, esfarrapados lençóis e as marcas
indeléveis dos desejos baratos, dispostos como fantasmas que assombram as
noites.
Quando o rádio toca o tema da novela, Dolores fecha
os olhos e brinca de ser pecadora.
Entronizada em altar de seda e plumas. As cédulas
amarrotadas são-lhe parcas oferendas. Vazados olhares e maltratados abraços
são-lhe votos de nunca mais.
[Ro Druhens]
o filho da mãe
12 anos de namoro e noivado e ela
custou a perceber onde havia amarrado a sua égua. A mãe dele, que se gabava de
dizer a verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade, sempre ponderava
toda vez que se falava de matrimônio: pra que correr? E avisou: ele tem esse
gênio, nasceu sem estopim, mas no fundo, tem coração. No
fundo.
Na frente, começou com a cirurgia
do nariz, que o incomodava: de perfil, lembrava um mezzo-tucano. O médico aproveitou o
ensejo e, em busca de harmonia, aumentou-lhe o queixo com uma prótese de
silicone. Em seguida, nova operação tratou de corrigir o desequilíbrio da
bochecha. Para isso, foi preciso um lifting. Rugas, flacidez e excesso
de pele sumiram no passo do mágico. Não bastou. As sobrancelhas foram destacadas
com micropigmentação. O que acentuou os olhos e a necessidade de reduzir as
pálpebras. Superiores e inferiores. Neto de cearense, olhar made in japan. As bochechas
desiquilibraram-se novamente. Outro lifting e um corte no maxilar, para tirar excesso de
osso. Os olhos, outra vez. Mais um recorte nas pálpebras superiores e uma
puxadinha nas inferiores. Lentes de contato. A bochecha. Lifting, pálpebras, botox,
preenchimento dos lábios com ácido hialurônico. Deu problema, um monte
de caroços. Tira tudo. Tenta polimetilmetacrilato. Agora sim. Era outro homem e
ela gostava de beijar Angeline Jolie.
A sogra escolheu morrer três horas
antes da cerimônia de casamento. O filho só ficou sabendo do óbito depois de
sair da igreja, quando a procurou, sob a chuva de arroz. Festa e viagem de
lua-de-mel canceladas, direto para o apartamento do casal.
No criado-mudo, ao lado da cama,
guardada para sempre num porta-retrato, a foto da primeira comunhão — terninho
de nycron, camisa volta-ao-mundo e sapato vulcabrás — que mereceu da mãe o único
adjetivo que ela lhe dedicou durante toda a sua vida, em forma de elogio:
en-gra-ça-di-nho.
Na primeira noite, olhou os seios
da mulher e sucumbiu, a cabeça entre eles, soluçando. Mamãe. Mamãe.
Mamãe.
[Silvana
Guimarães]
mais no site escritoras suicidas, onde também escrevo.
mariza lourenço
[imagem de kristen anne]
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