segunda-feira, 4 de novembro de 2013

conto de ronaldo cagiano


 
 
 
 
CONTO DE RONALDO CAGIANO

 
Atrapalhando o trânsito 

                                                                        A rua é uma máquina de gerar histórias.
                                                            Marçal Aquino
 

Não sobrou nada da família de dona Hermínia. Ela saiu de Porto Calvo pensando que a vida ia ser melhor em outro lugar. Não foi feliz lá nem aqui. O filho único que deixou no mundo morreu naquela terça-feira gorda ao atravessar o Eixo Rodoviário, pouco antes do meio-dia, em frente ao Hospital de Base. Ele quis evitar o burburinho das passagens subterrâneas, desviar dos camelôs tranca-vias, que se acumulam com seus templos de bugigangas, vendendo artigos importados do Paraguai. Quis ir mais rápido para o outro lado, para ganhar a pista de acesso ao Setor de Autarquias Sul, dirigia-se ao Bloco L, onde iria fazer perícia no INSS e tentar a aposentadoria por invalidez. Já tinha estado lá pela manhã, retirou a senha 341 e calculou o tempo em que seria chamado para dar início à sua nova via crucis: lá pela hora do almoço. Mas não imaginou que seria chamado mais cedo para o Céu. Gilson era a única descendência de dona Hermínia, que um dia saiu da seca, nas Alagoas, quando Brasília ainda estava sendo construída: comeu o pão que o diabo amassou, perdeu o marido no massacre da Pacheco Fernandes Dantas, quando ainda estava embuchada do menino e nunca mais quis casar. Quando ela morreu, Gilson sentiu-se só, mas a diabetes já o havia alcançado, mais cedo que à mãe: perdeu o tesão, a vontade de lutar, não arrumou companheira, estava perdendo a visão, um princípio de gangrena no pé esquerdo, deixou o trabalho de balconista na Pastelaria Viçosa da Rodoviária do Plano Piloto e vivia num barraco de fundos em Samambaia. O dinheiro do auxílio-doença mal dava para se manter. O fluxo vertiginoso de animais metálicos irrompia pela via expressa do centro da Capital e Gilson não teve paciência para descer as escadas que dão acesso às passarelas sob o Eixão e chegar à calçada em frente ao Banco Central e cortar por dentro, até chegar ao prédio da autarquia. Preferiu cortar caminho como sua vida, sempre cortada ao meio.  Feito uma pálida sombra em meio a tantos automóveis nos dois sentidos, foi colhido por uma Besta e jogado longe. Quem vinha do lado oposto, não dava a mínima. Os policiais chegaram em meio aos curiosos, quando sua alma já estava longe: afastem-se, facilitem a perícia, desobstruam a pista. Era mais uma vítima em meio a tantas que enxertam os obituários e congestionam o Campo da Esperança. Seu corpo estirado coberto por um lençol branco e cortejado por quatro velas (duas já apagadas pelas rajadas de vento lançadas pelos carros em circulação), enquanto o policiais, nervosos, tentavam dar jeito no trânsito e afastar curiosos, jazia, numeroso de trevas e insulina, à espera da burocracia pública, triste e velhaca como a morte.

 

 

                                                                                                                                                            Ronaldo Cagiano é escritor em sentido amplo e crítico literário. Com diversos prêmios, é autor de volumes de poesia e de contos. Participa de importantes antologias. Escreve nos principais jornais e revistas do país.

 

 

Imagem: Google, sad woman, loyar burok

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