CONTO
DE RONALDO CAGIANO
Atrapalhando o trânsito
A
rua é uma máquina de gerar histórias.
Marçal
Aquino
Não
sobrou nada da família de dona Hermínia. Ela saiu de Porto Calvo pensando que a
vida ia ser melhor em outro lugar. Não foi feliz lá nem aqui. O filho único que
deixou no mundo morreu naquela terça-feira gorda ao atravessar o Eixo
Rodoviário, pouco antes do meio-dia, em frente ao Hospital de Base. Ele quis
evitar o burburinho das passagens subterrâneas, desviar dos camelôs
tranca-vias, que se acumulam com seus templos de bugigangas, vendendo artigos
importados do Paraguai. Quis ir mais rápido para o outro lado, para ganhar a
pista de acesso ao Setor de Autarquias Sul, dirigia-se ao Bloco L, onde iria
fazer perícia no INSS e tentar a aposentadoria por invalidez. Já tinha estado
lá pela manhã, retirou a senha 341 e calculou o tempo em que seria chamado para
dar início à sua nova via crucis: lá pela hora do almoço. Mas não imaginou que
seria chamado mais cedo para o Céu. Gilson era a única descendência de dona
Hermínia, que um dia saiu da seca, nas Alagoas, quando Brasília ainda estava
sendo construída: comeu o pão que o diabo amassou, perdeu o marido no massacre
da Pacheco Fernandes Dantas, quando ainda estava embuchada do menino e nunca
mais quis casar. Quando ela morreu, Gilson sentiu-se só, mas a diabetes já o
havia alcançado, mais cedo que à mãe: perdeu o tesão, a vontade de lutar, não
arrumou companheira, estava perdendo a visão, um princípio de gangrena no pé
esquerdo, deixou o trabalho de balconista na Pastelaria Viçosa da Rodoviária do
Plano Piloto e vivia num barraco de fundos em Samambaia. O dinheiro do
auxílio-doença mal dava para se manter. O fluxo vertiginoso de animais
metálicos irrompia pela via expressa do centro da Capital e Gilson não teve
paciência para descer as escadas que dão acesso às passarelas sob o Eixão e
chegar à calçada em frente ao Banco Central e cortar por dentro, até chegar ao
prédio da autarquia. Preferiu cortar caminho como sua vida, sempre cortada ao
meio. Feito uma pálida sombra em meio a
tantos automóveis nos dois sentidos, foi colhido por uma Besta e jogado longe.
Quem vinha do lado oposto, não dava a mínima. Os policiais chegaram em meio aos
curiosos, quando sua alma já estava longe: afastem-se, facilitem a perícia,
desobstruam a pista. Era mais uma vítima em meio a tantas que enxertam os
obituários e congestionam o Campo da Esperança. Seu corpo estirado coberto por
um lençol branco e cortejado por quatro velas (duas já apagadas pelas rajadas
de vento lançadas pelos carros em circulação), enquanto o policiais, nervosos,
tentavam dar jeito no trânsito e afastar curiosos, jazia, numeroso de trevas e
insulina, à espera da burocracia pública, triste e velhaca como a morte.
Ronaldo Cagiano é escritor em sentido
amplo e crítico literário. Com diversos prêmios, é autor de volumes de poesia e
de contos. Participa de importantes antologias. Escreve nos principais jornais
e revistas do país.
Imagem: Google, sad woman,
loyar burok
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