quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Três poemas de Lisa Alves








[as mesmas mãos]


Da mão do tempo colhi experiências:
flores autênticas com espinhos artificiais.
A proteção desfigura-se – nada guarda a chuva.

Pingo tempestades, choro dilúvios
e o mar da tranquilidade pertence ao vizinho.

Disseram para livrar-me desses pensamentos,
mas as ideias enterradas nos pés da massa
                                      [ multiplicaram-me.
Sou eles, estou neles e agora somos
 os mesmos pés e as mesmas mãos.

Na dança da multidão ganho horários e cartões de compras.

Andar reto nesse coletivo insano.
Os meses são demais, mas são poucos os anos.
Um mapa traçado na face – ainda não é sinal do fim.

Gero despesas, abomino a TV
e quando vou às compras volto
com a sacola cheia de Nada.

A falta de sentido me causa dor – é melhor
pensar que sou um esqueleto.

Assistir um filme, ler um livro e depois dormir.
Ainda bem que a tenho aqui perto – só assim
para acreditar em existência imediata.

Lá fora sei que chove ou faz sol – é bem simples mesmo.
Lá fora sei que quem vai sempre volta – quase sempre.

Aqui dentro prefiro me preocupar com o
sistema digestivo das minhas gatas.
Aqui dentro falamos sobre o futuro,
quem vai cozinhar e o horário do remédio.

Não há garantias que nasci em 1981.
Não há garantias que nasci.
Não há garantias.
Não há.

Comunico-me com pessoas que nunca vi.
Isso não é desenvolvimento espiritual,
isso é desenvolvimento tecnológico – Kardec foi um visionário.

Eu amo a poesia de Drummond
mas odeio sua voz – eu também odeio minha voz.
Eu amo a prosa de Clarice Lispector
mas odeio sua voz – eu também odeio minha voz.

Quando a tempestade vai embora, eu sopro as nuvens.
Agosto e setembro passado trouxeram grandes inundações.
Mas depois me reformei, sou igual à multidão – resiliente.

O tempo sempre me doa mãos e eu as leio com minha visão turva e limitada.
O futuro é alquebrado, leva consigo lápides, histórias e resistentes construções.
O comum fica, fica também o rancor, o coração partido e a multidão dentro de mim.






[a negação da singularidade]

De onde estamos há chuvas e guarda-chuvas.
Da face transbordam matérias líquidas.
Do peito – estrondos enigmáticos.
E nos fazemos nuvem – cinzenta e carregada.

Abrimos a janela, fazemos chover e os homens
lá fora amaldiçoam o nosso milagre.
Pensei que fosse fácil entender nosso ilusionismo,
                                                        [mas há verdade nele.
Só compreendem a arte falsificada – a verdade não se cria.

Acordamos cedo, analisamos os classificados:
 ninguém precisa de nós – nenhum anúncio, nenhuma vaga.

Terminamos o café,
acendemos mais um cigarro – o quarto fica verde.

Um poema foi finalizado, a lixeira é mais uma vez presenteada.

Olho em nossos olhos e me vejo
um pouco mais leve,
um pouco mais velha.

O que fizemos nesse tempo? Chuvas? Tempestades? Cinema Mudo?
Somos duas em planos distintos – uma ponte atemporal de divisão.
No passado eu fui você e no presente nos encontramos.








[terapia]

Antes de tudo você precisa saber umas coisas sobre mim:
eu não falo nada: nem inglês,                            
nem francês                            
e muito menos                            
alemão.

Eu mal falo com a minha mãe e 
já se completam dezoito meses que
não ouço a voz do meu pai.

Meus vizinhos não gostam de mim, dizem que sou
“aquela moça que não fala com ninguém”.
As pessoas se enfurecem, se doem, ficam magoadas:

“Depois de tantos anos ela não fala
um simples “olá!” ou “Como vai você?”
ou pelo menos tenta fazer que nem aquela canção:
Tanta coisa que eu tinha a dizer,
mas eu sumi na poeira das ruas...

Não, não mesmo! Não nasci para falar.
Não posso olhar para o vizinho e fingir
que é importante saber se ele está bem,
se no fundo eu desejo mesmo é perguntar: como você suporta?







Lisa Alves (1981) é autora de Arame farpado (2ª. Edição - Penalux,  2018), mora atualmente no Rio de Janeiro. Faz parte do conselho editorial da revista Mallarmargens, é co-editora da Liberoamerica (Espanha) e resenha livros para a revista Incomunidade (Portugal). Tem textos publicados em diversas revistas, jornais e páginas literárias no Brasil, Espanha, Inglaterra, Moçambique e Portugal. Tem poemas e contos publicados em doze antologias lançadas no Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Espanha e País Basco.


Imagens: Henri Cartier-Bresson


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