quarta-feira, 4 de julho de 2012

de idas e vindas: ano novo, vida viva

retorno à blogosfera após uma longa ausência. isso aqui me fazia falta. e não teria me atentado para esta falta não fossem os outros dois de NÓSTRES, muito amigos e culpados pela minha decisão em voltar.

e, então, eu retorno com alegria, e sob o peso da responsabilidade da divisão deste espaço com dois homens absurdamente talentosos. não bastasse isso, Alberto e Vagner resolveram que devo inaugurar as postagens individuais. cavalheiros demais, não é? também acho. e eu me vingarei, oportunamente. hoje, no entanto, minha obrigação é não fazer feio. *;)

o texto escolhido para minha primeira postagem não é inédito, já foi premiado, anos atrás, com o primeiro lugar em um concurso literário. mas se o escolho hoje é por um motivo muito especial, o de dedicá-lo a Alberto Bresciani, nessa data querida.

parabéns, Alberto. muitos dias novos, muita poesia e todas as alegrias. segura, poeta, que esse conto, agora, é seu:

ano novo, vida viva
(Uma fábula)
 
"Muitos riam da transformação que se operara nele, mas pouco lhe importava o riso dos outros, pois bem sabia que nunca neste mundo se fizera alguma coisa boa que não fosse acolhida com sorrisos por certos homens, e tinha suficiente senso para perceber que nesses tais, cegos por sistema, o riso é uma doença, ainda assim das menos repelentes". [Charles Dickens]



Desenganada pelos médicos, ela que tratasse de aproveitar a vida, porque dias não lhe restavam muitos.

Quedou-se num mutismo absoluto, logo ela, tão moça ainda, cumpridora fervorosa dos mandamentos, que vivia de ajudar os pobrezinhos e nunca freqüentara leito alheio.

Que destino mais besta. 

Às dúvidas, que jamais seriam satisfeitas, seguiram-se revolta, dor e, finalmente, o desejo subversivo de fazer planos para um futuro inexistente e, de ponta-cabeça, quebrar todos os espelhos, empanturrando-se de azar pelo que ainda lhe restava de vida. Se a castidade não lhe garantira longevidade, que morresse mal-falada. Deixou a bíblia de lado, pendurou o terço no guarda-roupa, encurtou as saias, decotou todas as blusas, às escondidas bebeu do vinho consagrado, mastigou o pão que era da igreja e, delícia das delícias: comungou sem confissão. Aos olhares incrédulos dava de ombros. Às reprimendas respondia com palavrões. Nunca fora tão popular.

Certo dia, porém, coincidentemente, o último do ano, sentiu-se cretina e exausta. Era a morte que se aproximava. Preparou a própria mortalha, do guarda-roupa retirou o velho terço, abriu o evangelho e esperou que sua hora chegasse. E chegou, estranhamente parecida com ela mesma. Talvez fosse sempre assim, para derradeiro conforto dos moribundos, que a Morte lhes buscasse com cara conhecida:

— Pronta?

— Sim, mas antes, eu...

— Maria Alice, não tenho tempo! 

— Maria Alice? Não me chamo Maria Alice... Sou Teresinha.

— Ora, me enganei de novo. Ando cansada.

— Isso significa o quê? Que não vou morrer? Ai, Jesus!

— Alegre-se. Quem, como você, ante a perspectiva do fim pôde mudar tudo? Ou viver duas vidas em uma só?... Situação atípica. Moça de sorte.

— Mas o que eu faço daqui pra frente? Afinal, o erro foi seu!

A Morte lhe sorriu, impaciente:

— Só me faltava essa... Ensinar alguém a viver.

Deixou que a Morte fosse embora e, pela segunda vez, quedou-se muda, pensando no que faria para o resto de seus dias que, agora, lhe pareciam muitos: "Que vergonha, meu Deus. Nunca mais hei de sair às ruas."

E quem resiste à entrada de um novo ano? Ela, que vivera todas as faces da mesma moeda, que deixara de ser títere, para comandar as próprias alegrias e tristezas, por certo, não resistiria.

Tão logo a passarada anunciou a chegada da aurora, a jovem convenceu-se de que não teria quarta chance. Livrou-se da mortalha e, nua, como criança recém-parida, saiu ao sol. 

A vida, que sempre lhe metera medo, parecia-lhe agora um gostoso movimento de xadrez.

Ela que aprendesse a jogar.


mariza lourenço

[imagem stefano bonazzi]

11 comentários:

  1. Belíssimo conto. Presente merecido ao poeta que ensina a jogar o jogo da vida. Parabéns!

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  2. E sigo procurando palavras para agradecer, Mariza, talentosa amiga, mas não as encontro! Sim, a vida está viva como neste conto que deixa transparecer a sua sensibilidade, a sua criatividade, a poesia que leva consigo... Repito, há seres alados ao meu redor! Obrigado de coração!

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    1. não tem o que agradecer, Alberto. é um presente do coração.
      uma vez mais, parabéns nessa data especial e bonita.
      beijo.

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  3. Parabéns, Alberto, amigo mais que querido! Lindo conto, Mariza!

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  4. Cada ano de vida completado é mais um retorno do sol ao ponto inicial do nosso mapa astral.Um recomeçar,um re-nascimento,depois do periodo de sombra do chamado inferno astral.Assim como o conto dedicado a Alberto,é uma etapa que se renova,depois de um periodo de desalento.Nada mais apropriado para um aniversariante poeta,como noso amigo.Parabens Mariza,parabens Alberto!

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    1. pois é, Teresa, o conto-presente remete à renovação. *:)
      o dia é do Alberto, mas também agradeço a manifestação ao meu conto.
      um beijo.

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  5. Obrigado, muito caros Teresa e Vagner! Não há inferno astral que possa com amigos dessa qualidade!

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  6. Caro Alberto, aproveito o espaço para me associar à justa homenagem! Parabéns!! Muita saúde!!

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