Conversa de Menino
para Maria Camilla e Luiz Felipe
O menino era tão bonito que dava pena ralhar por qualquer coisa.
Que fosse livre, então!
E era! Passava os dias empinando pipa, subindo em árvores e atentando os cachorros da vizinhança.
Tinha uma saúde de ferro, nunca precisara tomar remédio para baixar
febre ou cortar infecção. Comia de tudo e não tinha desses enjoamentos
de recusar brócolis e bife de fígado.
Um encanto de criança e, no entanto, em toda a sua pequena existência,
jamais pronunciara uma única palavra. E não era doença não. Reviraram o
pobre menino de ponta-cabeça e nada de anormal foi constatado que
justificasse a mudez.
Diziam que ele falava com os olhos, com as mãos, com o corpo inteiro.
Quando sentia dor, fazia careta. Se a fome lhe vinha, apontava a
barriga. Chorar não chorava, só quando pisava em caco de vidro ou prego
enferrujado.
Os amiguinhos, com o tempo, aprenderam a identificar os gestos do
companheiro e comunicavam-se com ele de um jeito muito particular, que
só criança entende. Os adultos, ao contrário, irritavam-se com a
teimosia e lhe davam uns petelecos.
Ele não ligava e continuava mudinho da silva.
As crianças das redondezas juravam de pés juntos que ele falava com os
bichos lá na linguagem deles e que os animaizinhos o entendiam. Mas
menino mente tanto que os adultos não se preocupavam com isso, mesmo que,
aos olhos de toda a cidade, fosse visível a adoração dos animais por
aquele menino bonito.
Na casa do garoto a situação não era lá muito boa. Os pais brigavam
demais e diziam “coisas” que ele não compreendia. Só sabia que dentro de
casa tudo era sempre muito escuro e triste. A mãe era triste, o pai era
triste, a irmã era triste. Até o cachorro era triste. E ele... Ele era
mudo.
Certo dia foi embora de casa sem se despedir de ninguém. Nem do cachorro. Foi para bem longe e nunca mais voltou.
O tempo passou, as crianças cresceram e deixaram de compreender a
linguagem de criança e muitos casos foram inventados a respeito do
sumiço do menino que não falava: Uns diziam que ele havia ido embora de
carona com um anjo, outros, que tinha sido levado pelos ciganos.
O menino virou história bonita de se contar. Bonita e misteriosa. E
ficou famoso! Na pracinha onde brincava com os bichos foi erguida uma
estátua em sua homenagem. E mais casos foram inventados. Agora já corre
boato de que ele anda fazendo milagres.
Quem ri disso tudo é Filó, a andorinha que todos os anos costuma passar o
verão na cidadezinha. Sempre chega com notícias fresquinhas do menino:
— Ele virou doutor de bicho!
— Doutor de bicho?
— É, inclusive deu um jeito naquela ferida que eu tinha no cocuruto.
— Ele volta?
— Diz ele que não.
— Ele agora fala? Deixou de ser mudo?
— Nunca foi, ora! É que ele só falava da boca pra dentro. E continua assim.
— Mudo?
— Não! Continua falando da boca pra dentro. Mas a gente que é passarinho, entende.
— Ah...
— Vamos dar uma volta?
As duas andorinhas bateram asas e foram passear pela cidade. Ela havia
crescido, mas as histórias, as invencionices, as maldades e as brigas,
como em todo canto, eram as mesmas.
Filó sentiu-se cansada e com desejo de ir embora. Antes, porém, avistou
dois garotos brincando aos pés da estátua do menino bonito. Nada diziam.
A andorinha, então, aproximou-se e entre os três iniciou-se animada conversa.
E falaram bastante e riram demais, mas daquele jeito que somente passarinho e criança entende:
da boca pra dentro e com todos os corações refletidos nos olhos.
mariza lourenço
[imagem cory docken]
"... daquele jeito que somente passarinho e criança entende:da boca pra dentro e com todos os corações refletidos nos olhos". Um conto especial, Mariza! Muito bonito!
ResponderExcluirmerci, Alberto. gentil como sempre.
ExcluirAdorei! Quem me dera entender aquilo que somente passarinho e criança entendem...
ResponderExcluirum dia nós já entendemos, né, Sandra? obrigada pela leitura. um beijo.
ExcluirQuero tanto aprender a falar assim...da boca pra dentro! Que lindo conto Mariza!
ResponderExcluirprimo querido, eu também! obrigada e beijo!
Excluir(da próxima vez o senhor trate de assinar seu comentário... hehehe. eu adorei esse nome)
Historinha massa, com o pezinho no fantástico! Como os meninos e os passarinhos! Queria lhe mostrar minha andorinha, ML! Claro que v. não sabia que eu criava umazinha, né? Pois eu, cuido de umazinha... andorinha! Um dia lha apresento, viu? Xau.
ResponderExcluireu li a andorinha. linda!
Excluirobrigada, querido, por gostar da minha historinha!
beijo beijo
e o meu post de hoje falando sobre mudos e surdos, de colocar minha voz para dentro de mim mesmo, para ver se sou entendido, mas você com esta história lindérrima vem e adivinha tudo e diz mais, muito mais do que eu seria capaz dizer, e ainda essa parte dos animais entenderem o mudinho, que caberia bem no meu texto, mas a minha ´criatividade não foi até aí...rs... sem brincadeira, olha lá, escrevi hoje de manhã, e só li seu texto à tarde, parece telepatia. Adorei! Beijo
ResponderExcluirBenno querido, acabei de ler e comentar seu 'desabafo' poético. coerente, sincero e emocionante, como sempre. você sempre diz mais e bem.
Excluirbeijo enorme.
Passarinho, criança, rosa tirada de cartola, aqueles vidrinhos de perfume: não falam, exalam. Lindo, Mariza!
ResponderExcluirvagner, você sabe da importância de tudo aquilo que exala. assim, a sua leitura, pra mim: importante demais. e essencial.
Excluiro beijo.
havia uma história - esta verdadeira - de um menino assim - ele não falava. a mãe, negra da fazenda, fazia os trabalhos mais pesados - ele caladinho. um dia o patrão disse a ele que já tinha uns 12 anos - faz isto. ele ouvia, era bem mandado... o patrão gritou, faz mais depressa ou te passo esse chicote. então o menino parou, olhou o patrão bem nos olhos e lhe disse - se me bater eu lhe mato. continuou sua tarefa - calado - pois não gostava de conversar.
ResponderExcluirLirinha, que lindo! e que bom vê-la por aqui, minha amiga.
Excluirbeijos