de (re)invenções

APRENDIZ

Eu não sabia que tratamento dispensar a ele. Temia enfiar os pés pelas mãos e ficar desacreditada para sempre.

Preferi calar-me e esperar que partisse dele o primeiro movimento. Mas ele nada fez. Ficou me olhando sem piscar. Depois, pegou um livro e iniciou sua leitura. Em silêncio absoluto.

Entrei em pânico: ele estava me testando e, provavelmente, a minha capacidade divinatória. Ou, talvez, a minha frágil paciência.

Resisti ao impulso de transformar-me em copo de leite ou flor ou fruta. Ou uma barata. Deixei que os segundos e minutos virassem horas

Ele continuava a leitura e eu, estranhamente, serenava

Era aquele o momento certo para testar a minha forma definitiva e primeira: transformei-me em pequeno pássaro recém-nascido, de asas úmidas e grudadas ao corpo.

E foi aí que aquele homem — mais velho que o mundo — fechou o livro, pegou-me entre as mãos e apertando-me contra as vestes, aqueceu-me.

Então, abriu a janela, colocou-me sobre o parapeito e disse baixinho:

— Está feito... Vai!

Em toda a minha vida jamais havia sentido tamanha certeza.

Lancei-me ao espaço, abri as asas e tomei o rumo do sol.

O céu nunca estivera tão azul e bonito.

E eu, tão livre!

mariza lourenço

[imagem Ben Watkin]