segunda-feira, 9 de julho de 2012

para quem é criança

Conversa de Menino
para Maria Camilla e Luiz Felipe


O menino era tão bonito que dava pena ralhar por qualquer coisa.

Que fosse livre, então!

E era! Passava os dias empinando pipa, subindo em árvores e atentando os cachorros da vizinhança.

Tinha uma saúde de ferro, nunca precisara tomar remédio para baixar febre ou cortar infecção. Comia de tudo e não tinha desses enjoamentos de recusar brócolis e bife de fígado.

Um encanto de criança e, no entanto, em toda a sua pequena existência, jamais pronunciara uma única palavra. E não era doença não. Reviraram o pobre menino de ponta-cabeça e nada de anormal foi constatado que justificasse a mudez.

Diziam que ele falava com os olhos, com as mãos, com o corpo inteiro. Quando sentia dor, fazia careta. Se a fome lhe vinha, apontava a barriga. Chorar não chorava, só quando pisava em caco de vidro ou prego enferrujado.

Os amiguinhos, com o tempo, aprenderam a identificar os gestos do companheiro e comunicavam-se com ele de um jeito muito particular, que só criança entende. Os adultos, ao contrário, irritavam-se com a teimosia e lhe davam uns petelecos.

Ele não ligava e continuava mudinho da silva.

As crianças das redondezas juravam de pés juntos que ele falava com os bichos lá na linguagem deles e que os animaizinhos o entendiam. Mas menino mente tanto que os adultos não se preocupavam com isso, mesmo que, aos olhos de toda a cidade, fosse visível a adoração dos animais por aquele menino bonito.

Na casa do garoto a situação não era lá muito boa. Os pais brigavam demais e diziam “coisas” que ele não compreendia. Só sabia que dentro de casa tudo era sempre muito escuro e triste. A mãe era triste, o pai era triste, a irmã era triste. Até o cachorro era triste. E ele... Ele era mudo.

Certo dia foi embora de casa sem se despedir de ninguém. Nem do cachorro. Foi para bem longe e nunca mais voltou.

O tempo passou, as crianças cresceram e deixaram de compreender a linguagem de criança e muitos casos foram inventados a respeito do sumiço do menino que não falava: Uns diziam que ele havia ido embora de carona com um anjo, outros, que tinha sido levado pelos ciganos.

O menino virou história bonita de se contar. Bonita e misteriosa. E ficou famoso! Na pracinha onde brincava com os bichos foi erguida uma estátua em sua homenagem. E mais casos foram inventados. Agora já corre boato de que ele anda fazendo milagres.

Quem ri disso tudo é Filó, a andorinha que todos os anos costuma passar o verão na cidadezinha. Sempre chega com notícias fresquinhas do menino:

— Ele virou doutor de bicho!

— Doutor de bicho?

— É, inclusive deu um jeito naquela ferida que eu tinha no cocuruto.

— Ele volta?

— Diz ele que não.

— Ele agora fala? Deixou de ser mudo?

— Nunca foi, ora! É que ele só falava da boca pra dentro. E continua assim.

— Mudo?

— Não! Continua falando da boca pra dentro. Mas a gente que é passarinho, entende.

— Ah...

— Vamos dar uma volta?

As duas andorinhas bateram asas e foram passear pela cidade. Ela havia crescido, mas as histórias, as invencionices, as maldades e as brigas, como em todo canto, eram as mesmas.

Filó sentiu-se cansada e com desejo de ir embora. Antes, porém, avistou dois garotos brincando aos pés da estátua do menino bonito. Nada diziam.

A andorinha, então, aproximou-se e entre os três iniciou-se animada conversa.

E falaram bastante e riram demais, mas daquele jeito que somente passarinho e criança entende:

da boca pra dentro e com todos os corações refletidos nos olhos.

mariza lourenço

[imagem cory docken]

14 comentários:

  1. "... daquele jeito que somente passarinho e criança entende:da boca pra dentro e com todos os corações refletidos nos olhos". Um conto especial, Mariza! Muito bonito!

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  2. Adorei! Quem me dera entender aquilo que somente passarinho e criança entendem...

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    1. um dia nós já entendemos, né, Sandra? obrigada pela leitura. um beijo.

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  3. Quero tanto aprender a falar assim...da boca pra dentro! Que lindo conto Mariza!

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    1. primo querido, eu também! obrigada e beijo!
      (da próxima vez o senhor trate de assinar seu comentário... hehehe. eu adorei esse nome)

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  4. Historinha massa, com o pezinho no fantástico! Como os meninos e os passarinhos! Queria lhe mostrar minha andorinha, ML! Claro que v. não sabia que eu criava umazinha, né? Pois eu, cuido de umazinha... andorinha! Um dia lha apresento, viu? Xau.

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    1. eu li a andorinha. linda!
      obrigada, querido, por gostar da minha historinha!
      beijo beijo

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  5. e o meu post de hoje falando sobre mudos e surdos, de colocar minha voz para dentro de mim mesmo, para ver se sou entendido, mas você com esta história lindérrima vem e adivinha tudo e diz mais, muito mais do que eu seria capaz dizer, e ainda essa parte dos animais entenderem o mudinho, que caberia bem no meu texto, mas a minha ´criatividade não foi até aí...rs... sem brincadeira, olha lá, escrevi hoje de manhã, e só li seu texto à tarde, parece telepatia. Adorei! Beijo

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    1. Benno querido, acabei de ler e comentar seu 'desabafo' poético. coerente, sincero e emocionante, como sempre. você sempre diz mais e bem.
      beijo enorme.

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  6. Passarinho, criança, rosa tirada de cartola, aqueles vidrinhos de perfume: não falam, exalam. Lindo, Mariza!

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    1. vagner, você sabe da importância de tudo aquilo que exala. assim, a sua leitura, pra mim: importante demais. e essencial.
      o beijo.

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  7. havia uma história - esta verdadeira - de um menino assim - ele não falava. a mãe, negra da fazenda, fazia os trabalhos mais pesados - ele caladinho. um dia o patrão disse a ele que já tinha uns 12 anos - faz isto. ele ouvia, era bem mandado... o patrão gritou, faz mais depressa ou te passo esse chicote. então o menino parou, olhou o patrão bem nos olhos e lhe disse - se me bater eu lhe mato. continuou sua tarefa - calado - pois não gostava de conversar.

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    1. Lirinha, que lindo! e que bom vê-la por aqui, minha amiga.
      beijos

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