quarta-feira, 8 de agosto de 2012

das vocações hereditárias

I

eu a vi sentada na cadeira de sempre. parecia não dormir há anos. os nós dos dedos estavam brancos de tanto desfiar o terço. ela reza demais. ela chora demais. sempre foi assim. esse pranto de dor. essa reza pedinte. esse fardo maior que a vida. a dela e a minha, desde que nasci.

até quando, minha mãe, esse choro por mim?

II

tenho raiva dela. tenho inveja de sua fé, de seu conformismo, de sua abnegação. sua coragem desmascara a minha fraqueza. eu a culpo e ela disputa comigo uma dor que é só minha. a vida se tornou insuportável ao seu lado.

porque ela sempre soube o que eu nunca hei de saber.

III

ela não me avisou que seria assim, que eu seria assim, feito ela. que ela seria meu espelho. e que sua dor e a minha seriam irmãs. todas as lágrimas que verti têm o gosto dela. tudo é dela.

até esta vocação para a infelicidade.

IV

aquele homem disse: a filha não sobreviverá à mãe. ela acreditou e tem se esforçado em descumprir nosso destino. vez por outra eu a pego tentando desmanchar com os olhos as linhas das minhas mãos.

ela me ama.

e eu a amo tanto, como ninguém, em tempo algum, poderá amar.

mariza lourenço


[imagem de Mihael]

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