segunda-feira, 6 de agosto de 2012

júlia,

sei que este não é o lugar adequado para resolver pendências, mas há outro modo? você ignora meus e-mails e não atende o telefone. mas fiquei sabendo que lê este blog. nunca vou entender.

naquele dia você disse que não gosta dos meus poemas. ou será que disse que gosta e não entendi? não sei. havia muita gente falando ao mesmo tempo. de todo modo, um mal estar ficou entre nós por conta - quem diria? - dela, a poesia.
prometi a mim mesmo que me calaria, mas promessas só fazem sentido quando são acompanhadas de convicção. e a convicção nasce - ou pode nascer - quando o assunto já não assalta a mente (e o corpo).
aí está o centro: resolver é solver, dissolver.
você falou de sua pouca intimidade com poesia ("amo poesia, mas tenho pouca intimidade com ela"). eu falava sobre ambigüidades: entender poesia não é colocar pingos nos is, não é dizer "ah, o poema fala de". seria como perguntar: "de que fala este seu dia?".
o dia não fala, acontece. a gente é que fala do dia. o dia não fala. a gente é que fala do poema. o poema apenas acontece.
ninguém pode responsabilizar um dia.
- dia, hoje você está muito ambíguo!
o dia apenas acontece.
e nem existe o que entender do dia, no sentido em que o dia não tem sentido. o dia não ensina nada, porque o dia não sente.
- ora, mas eu aprendo com meus dias, meus professores dias!
- ah, não... (expressão ambígua; um misto de desalento e mirada em outras vias discursivas).
- o que foi?, pergunta júlia, entre impaciente e indecisa.
- eu não disse que você não aprende com o dia, disse que o dia não ensina.
- você falou que não existe o que entender do dia.
- sim, eu disse (a voz dele sai quase imperceptível. pausa para o fumo. ela agora mostra-se paciente). eu disse que não há contido no dia algo a se entender. o dia não contém.
o dia não contém, não sente, não tem sentido, não ensina. o dia apenas acontece. se se aprende com ele é porque se o toma como continente e despejam-se nele os conteúdos (nessa hora ele surpreende-se com sua fala, encanta-se com o assunto, mas não se lembra o motivo pelo qual fala. olha para ela buscando auxílio. ou apenas olha para ela).
a mocinha permanece em silêncio, mas isso não o perturba. (NOTA DO TRADUTOR: nesse trecho, a ausência dos parênteses e do itálico, característicos da rubrica dramatúrgica, aponta a presença de um narrador - já antes esboçada - o que marca a expressão do autor; uma ambigüidade que se mantém ao longo de seu texto, de seus textos e se manteria por toda sua vida, pessoal e/ou literária. alguns críticos o censurariam pelo truque: uma ausência gerando uma presença).
- você pratica um ilusionismo verbal. parece o..., qual o nome daquela personagem do livro palavrespelho? (júlia faz um ar esnobe) altino! por que não fala logo que quer apenas me comer? (NOTA DO AUTOR: essa parte inicialmente fora cortada por excesso de inverossimilhança, mas voltou à cena por exigências contratuais e por fetiche. NOTA DA EQUIPE DE TRANSCRIÇÃO: ruídos de carros impossibilitam a audição dos vinte e sete segundos subseqüentes. NOTA DO COMENTADOR: não se sabe se ele não ouviu a última fala dela. consultas feitas ao autor não trouxeram esclarecimentos. não se distingüiu se o autor não se lembrava do fato, se dissimulava ou se outra coisa. alguns o acusariam de não mais saber separar realidade de ficção. após a morte do autor, alguns de seus amigos próximos tentaram elucidar o episódio, mas nunca houve consenso sobre as conclusões).
nunca ouvi falar desse livro, mas é claro que eu não podia dar o braço a torcer. resolvi então acrescentar a rubrica: (ele tira da mochila um exemplar e o coloca ostensivamente sobre a mesa).
- acabei de comprar.
a essa altura ele está entorpecido. não pelo fumo, que fernando (NOTA DO COMENTADOR: note-se que é a única vez em que aparece o nome de uma personagem) já aponta como ineficiente, mas pelo jogo em que a conversa se transformou). fernando (NOTA DO REVISOR DA EDIÇÃO CHILENA: essa segunda ocorrência do nome próprio - e sem a continuação do enunciado - apareceu misteriosamente a partir da quinta edição. encontrou-se um exemplar da quarta edição, hoje pertencente à casa de cultura de buenos aires, em que também há duas ocorrências do nome, mas que, o que só aumentou o mistério, traz "fernando" na primeira ocorrência e, na segunda, "augusto". o fato foi amplamente divulgado pela imprensa da época, gerando inclusive uma frustrada investigação policial. houve quem dissesse tratar-se de jogada de marketing - ainda que naquela época não existisse marketing como campo constituído. observe-se que a quarta edição de a palavra no espelho aparece vinte e sete anos após a morte do autor. júlio torres de gonzaga, em palestra proferida em 1996, citou a existência de um exemplar que também apresentava dois nomes, mas em que o segundo aparecia ao fim do romance e seria aquino. o volume teria sido, conforme torres de gonzaga, adquirido por colecionador cujo nome seria também aquino. embora tenham-se encontrado alguns indícios, o fato nunca foi confirmado).
- você falava sobre poesia.
aquino sente-se (NOTA DO TRADUTOR: a expressão original é "aquino vê-se". é conhecida a implicância, impaciência e frustração do autor com os papéis exercidos pelos narradores. "como o narrador saberia o que sente a personagem se nem a personagem o sabe?", teria dito o autor, que também acrescentaria: "ora, tanto faz, é só literatura. meu maior romance um dia será o silêncio", antecipando em muito o "o pelé de boca fechada é um poeta", do romário) mergulhado no paradoxo. a maneira de ela trazer a conversa para a razão era a um só tempo frustrante e motivadora: era uma âncora atirada ao mar em que navegava o devaneio; era o convite - como ela consegue esse grau de racionalidade? - a, num jogo de espelhos, subir uma camada no devaneio, subsumindo em um único corpo a razão dela e seu desvario. o novo nível de devaneio seria emparelhado a um novo patamar de racionalidade dela. assim se seguiria, em espiral, de modo que fernando já não mais sabia se descia ou se subia, apenas interessava-se por juntar em um só corpo a razão e o devaneio. (NOTA DO COMENTADOR: NOTA ANÔNIMA, ENCONTRADA EM 1971, PICHADA NUM MURO, EM NOVA IORQUE: provavelmente aquino estava - o que daria razão a júlia, que, lembremo-nos, era marcadamente racional - interessado na fusão de corpos, o seu e o dela, especialmente sugerida pela figura vulgar do "subia e descia").
- a poesia apenas acontece. o mais é ilusão.

alzira,

o resto você pode facilmente inferir sem precisar ler esses livros ruins: a solvência só se daria na fusão de corpos. ou, se não de corpos, num corpo a razão e o devaneio. o que me daria razão: jogo de sedução e processo terapêutico. avise-me quando puder fazer a distinção.
se preferir, em linguagem de dia-de-semana (note o ritmo ternário):
como se pode firmar a razão se quem manda é a fome?

aquino

3 comentários:

  1. Que construção, Vagner! Razão e devaneio: ente uma coisa e outra sempre. Texto bacana!

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  2. e o surreal termina, ou desemboca, como o leito do rio encontrando a origem, na simplicidade de alzira e aquino. quem manda é a fome. ela é secular e prescinde de nomes.
    Vagner, tô pensando... digo que é bárbaro? parece-me muito pouco pra traduzir a falta do/de ar.
    um beijo.

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  3. ah... o que seria de Nóstres sem Vósdois? ou melhor, o que seria de mim?
    obrigado, meus queridos!

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