segunda-feira, 23 de setembro de 2013

reabilitação


REABILITAÇÃO
ALBERTO BRESCIANI
Havia terminado o café e me levantava com a velocidade do atraso para o trabalho. O som desagradável do arrastar da cadeira jamais me preveniria de tudo isto. Ao inclinar-me para lhe beijar a testa, ela disse: vou embora! Não conhecia aquela pessoa. Caí sentado e lhe perguntei um porquê com a língua dura de pavor. As coisas não estão bem há muito tempo. Encontrei outra pessoa. Abriu a porta dos fundos e saiu. Eu fiquei ali. O susto crescendo em mim até libertar-se em choro compulsivo. Não sei quanto tempo permaneci na cena congelada. Agora eu havia conseguido. Estava só. Coerência. A solidão sempre ruminou em mim. O despertencimento rondando. A inadequação. A inutilidade de uma coruja que não aprende a caçar e não come beterraba. Ficava no escuro. Tudo era ainda mais estranho. Uma tarde eu os vi. Estavam saindo de um banco. Estanquei. Parei de respirar. Senti vergonha. Não era raiva nem ciúme. Eu a decepcionei e deixei partir. Ela era única. Estar ao lado dela era ser quase alguém. Tão bom ver nela todo aquele brilho, os seus desenhos e cores, o cheiro. O rosto dela adolescente, o rosto dela muito depois em cada quadro. Que coisa estranha viver. Nunca se sabe o que vem. E vem bala.  Eu sei que ela me amava. Foi por isso que esperei. Era para ser assim. Hoje, quando entrei no vagão do metrô, ela estava lá. Sozinha. Alguma coisa me empurrou até ela. Não pensei em nada. Minutos. Quatro passos. O cara gritou e o barulho começou. Gritos. Eu olhei para ele. Olhei para ela. Linda. O terror nas pessoas desesperadas, terror em câmera lenta, ratos presos no forno ligado. Nossas mãos se entrelaçaram e a vida toda veio repassada no sangue que escorria. O cara matou quase todos. Nós dois. Não erro mais. Agora o meu amor é para sempre.

Imagem: Marc Chagall, Paisagem Azul, 1949

13 comentários:

  1. Romeu e Julieta - pós-modernos - abatidos à bala perdida!

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  2. Fiquei sem fôlego do começo ao fim...nunca se sabe o que vem! O que mais me impressiona é a sua capacidade de nos fazer vivenciar os contos. São momentos sublimes numa realidade paralela.
    Mereaim.

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  3. Lindíssimo!!! Nenhuma palavra perdida. Parabéns, Alberto!

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  4. Alberto,

    Li, sem respirar! Tudo tão rápido, como os vagões do metrô! E a coruja que não come beterraba é único. Adorei, adorei, adorei... Parabéns! Flávia

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  5. Alberto,
    O despertencimento é que nos cabe, mesmo que o amor seja para sempre.
    Adorei seu texto!
    Abraço,
    Morvan.

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  6. Denso, forte, preciso, envolvente, com expressões muito próprias e apropriadas. Gostei muito, Bresciani. Parabéns!

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  7. Forte! Fiquei sem respirar por alguns segundos... Excelente!

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  8. sempre me pergunto como o poeta consegue ser universal? ainda não sei a resposta.
    Só sei que me identifico com essa solidão que me rumina.
    Mais um vez parabéns, adoro seus mini contos!

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