domingo, 5 de abril de 2015

A POESIA COM “CORPO E PASSADO” DE ANDRÉ CARAMURU AUBERT



 
 
A POESIA COM “CORPO E PASSADO” DE ANDRÉ CARAMURU AUBERT

 

tempo

 

Você se lembra?

De nós dois sentados na areia da praia,

nos fins de tarde

enquanto as crianças brincavam de rolar até o mar,

imitando animais e objetos, que nós inventávamos

e nós dizíamos (algumas eram fáceis, algumas bem absurdas): agora vocês são pinguins, agora geladeiras, agora minhocas, agora siris, agora fogões,

eram infinitas as possibilidades

e nós ríamos muito, eram campeonatos,

eles competiam para ver quem imitava melhor,

e se esforçavam,

e você se lembra como nós manipulávamos cuidadosamente os resultados?

para que no fim das contas desse empate,

e depois todos nós mergulhávamos no mar

para limpar a areia antes de irmos para o chuveiro,

e agora eles cresceram, e nós envelhecemos

e eles mal ficam com a gente

e a brincadeira do pinguim e da geladeira

é apenas uma lembrança cada vez mais distante no tempo.

 

tempo II

 

(atualizando Nabokov)

a vida às vezes não é mais do que observar as folhas da palmeira na casa do vizinho

balançarem ao vento

numa breve manhã de outono

ensolarada, enquanto lá da rua vem o barulho do caminhão de gás

sabendo que a escuridão do tempo que veio antes de nós, e do tempo que virá depois

é infinita.

 

tempo III

 

cacos de azulejos, de xícaras, de telhas, de utensílios indefinidos, e

pratos (ou bacias) de ágata arruinados, espalhados

pelo chão, no ponto onde a areia da praia deserta encontra o

barranco do mato, e

no mato, no meio do mato, um limoeiro velho, folhagens vermelhas, amarelas e roxas do jardim extinto

e também uma banheira uns dois terços enterrada,

querem contar (mas, numa arqueologia sem método, não contam) a história das pessoas que viveram ali,

e que já se foram, sem que saibamos como eram, se foram felizes (e quando), se

viveram tragédias e tristezas (e quando) (e quanto),

como se chamavam (seus nomes e apelidos) e

onde estão enterradas (ou se o mar as devorou).

 

mas temos fome, então nadamos até o barco, vamos embora dali e

logo nos esquecemos daquele lugar e daquelas pessoas que já morreram.

 

 

 

 

André Caramuru Aubert nasceu em São Paulo, em 1961. É historiador, editor e escritor. Já colaborou com publicações como O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil. Atualmente é colunista da revista Trip e colaborador do jornal Rascunho, para o qual mensalmente seleciona e traduz, entre seus preferidos, algum poeta estrangeiro. Publicou os romances A Vida nas Montanhas, A Cultura dos Sambaquis e Cemitérios. Há pouco tempo decidiu que já estava mais do que na hora de tirar seus poemas da gaveta e espalhá-los por aí. A poesia de André salta de poemas-quadros, nos quais, como diria Roland Barthes, “imagens, um fluir, um léxico nascem do corpo e do passado do escritor e se tornam, pouco a pouco, os automatismos mesmos de sua arte”. Seja bem-vindo, André!


 

Um comentário:

  1. O quanto profunda é a simplicidade da vida, a eternidade provisória, a impermanência. A poesia de André Caramuru Aubert! Um abraço

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