A POESIA COM “CORPO E PASSADO” DE ANDRÉ
CARAMURU AUBERT
tempo
Você se lembra?
De nós dois sentados na areia da praia,
nos fins de tarde
enquanto as crianças brincavam de rolar até o mar,
imitando animais e objetos, que nós inventávamos
e nós dizíamos (algumas eram fáceis, algumas bem absurdas): agora vocês
são pinguins, agora geladeiras, agora minhocas, agora siris, agora fogões,
eram infinitas as possibilidades
e nós ríamos muito, eram campeonatos,
eles competiam para ver quem imitava melhor,
e se esforçavam,
e você se lembra como nós manipulávamos cuidadosamente os resultados?
para que no fim das contas desse empate,
e depois todos nós mergulhávamos no mar
para limpar a areia antes de irmos para o chuveiro,
e agora eles cresceram, e nós envelhecemos
e eles mal ficam com a gente
e a brincadeira do pinguim e da geladeira
é apenas uma lembrança cada vez mais distante no tempo.
tempo II
(atualizando Nabokov)
a vida às vezes não é mais do que observar as folhas da palmeira na casa
do vizinho
balançarem ao vento
numa breve manhã de outono
ensolarada, enquanto lá da rua vem o barulho do caminhão de gás
sabendo que a escuridão do tempo que veio antes de nós, e do tempo que
virá depois
é infinita.
tempo III
cacos de azulejos, de xícaras, de telhas, de utensílios indefinidos, e
pratos (ou bacias) de ágata arruinados, espalhados
pelo chão, no ponto onde a areia da praia deserta encontra o
barranco do mato, e
no mato, no meio do mato, um limoeiro velho, folhagens vermelhas,
amarelas e roxas do jardim extinto
e também uma banheira uns dois terços enterrada,
querem contar (mas, numa arqueologia sem método, não contam) a história
das pessoas que viveram ali,
e que já se foram, sem que saibamos como eram, se foram felizes (e
quando), se
viveram tragédias e tristezas (e quando) (e quanto),
como se chamavam (seus nomes e apelidos) e
onde estão enterradas (ou se o mar as devorou).
mas temos fome, então nadamos até o barco, vamos embora dali e
logo nos esquecemos daquele lugar e daquelas pessoas que já morreram.
André Caramuru Aubert nasceu em São Paulo, em 1961. É
historiador, editor e escritor. Já colaborou com publicações como O Estado de
S. Paulo e Jornal do Brasil. Atualmente é colunista da revista Trip e
colaborador do jornal Rascunho, para o qual mensalmente seleciona e traduz,
entre seus preferidos, algum poeta estrangeiro. Publicou os romances A Vida nas
Montanhas, A Cultura dos Sambaquis e Cemitérios. Há pouco tempo decidiu que já
estava mais do que na hora de tirar seus poemas da gaveta e espalhá-los por aí.
A poesia de André salta de poemas-quadros, nos quais, como diria Roland
Barthes, “imagens, um fluir, um léxico nascem do corpo e do passado do escritor
e se tornam, pouco a pouco, os automatismos mesmos de sua arte”. Seja
bem-vindo, André!
O quanto profunda é a simplicidade da vida, a eternidade provisória, a impermanência. A poesia de André Caramuru Aubert! Um abraço
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