terça-feira, 20 de agosto de 2019

REGISTROS. BYE BYE BABEL. PATRÍCIA LAVELLE. A VIAGEM DAS PALAVRAS





Bye bye Babel, diz Patrícia Lavelle, como quem, do castigo da multiplicidade das línguas e pela ousadia de se ter desejado bater à porta de Deus, parte da torre amaldiçoada para o mundo de comunicação incompleta e inexata, em que toda palavra é insuficiente (“Mas quando a palavra quer / tocar o céu, / torna-se escasso / o material”), onde o desalento ameaça, mas também onde o amor ainda pode ser resgatado e resgatar. O eu-lírico, nessa caminhada, leva, em sua bagagem, a “Palavra estrangeira” e, assim, decide que um “Dialogue” seja também um “Diálogo” (recurso muito criativo). Os poemas estão distribuídos em cinco partes: Ruínas, Palavra híbrida, Eros & Logos, Tempos verbais e Ecos & vozes. Alinham-se com absoluta coerência. “Procura-se palavra para dizer a cor daquele instante / em que o amor foi eterno e a morte / cansada / pediu-lhe trégua”: como acontece com os “amantes abraçados contra a morte”, de Alexandre O’Neill, a poesia, aqui, resguarda o instante e, assim, salva-o e nos salva da finitude. Nessa coletânea, encontra-se a precisão de Kairós na desordem de Cronos, Eros se explica em logos. Em “Arca de Babel”, lemos que “esta cidade à deriva / é balbúrdia e tradução”. Sim, a imprecisão de todas as biografias é “este barco à deriva”, ainda que em busca ascendente, por meio de “impulsos ícaros rumo ao sol”. A dualidade de tudo é metaforizada, um ótimo achado, pelo leão-marinho, memória simultânea da fera e do peixe salvífico. A feição sacrificial da poesia é registrada “à passagem progressiva dos anos”, mas nada que “versos ao vento” não preservem. A poética de Patrícia é musical, firme e consciente. Um primeiro livro com força e maturidade poética.


Bye bye Babel, de Patrícia Lavelle, Editora 7 Letras, 2018, 75 páginas



PALAVRA ESTRANGEIRA

Entre palavras e coisas,
há sempre alguma distância:
na palavra, a coisa é outra
na coisa, a palavra nem é.
Mas essa coisa sonora,
que a palavra é também,
é uma forma de armadilha
pra pegar uma outra coisa.

Presa em palavra estrangeira,
uma coisa é ainda mais outra
menos diversa dela mesma
que do meu próprio silêncio.

Mas a palavra estrangeira
que tardiamente apreendi
em prévia palavra estrangeira
torna-se coisa ainda mais diversa
prendendo-me assim à primeira.

Coisa apreendida no tempo,
toda palavra é armadilha
onde eu, ela ou isto
(a coisa pensante = X)
capturada, captura-se:
toda palavra é estrangeira.


KAIRÓS


quando teu sopro se instala


no instante



dilatação desse instante


no quando


o  tempo  numa  bolha  de  sabão



ARCA DE BABEL

Era uma vez duas histórias:
a cidade em construção
era este barco à deriva.

Nele, as línguas, enroscadas,
pares híbridos e férteis,
cresciam e multiplicavam-se.

Um abarcar, muitas arcas:
esta cidade à deriva
é balbúrdia e tradução.





A autora: Patrícia Lavelle é professora do Departamento de Letras da PUC-RJ. Doutora em filosofia pela EHESS de Paris, onde morou entre 1999 e 2014, tem ensaios publicados na França e no Brasil. Como poeta, publicou Migalhas metacríticas (7Letras, Megamíni, 2017), Bye bye Babel (7 Letras, 2018, primeira menção honrosa no Prêmio Cidade de Belo Horizonte de 2016) e organizou com Paulo Henriques Britto O Nervo do poema. Antologia para Orides Fontela (Relicário, 2018).

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