Nervura (Editora Patuá, 2019), novo livro de poemas de Carlos Orfeu, é um belo
presente. Com sua linguagem precisa, o poeta não se curva a construções
limitadamente cerebrais. Há emoção desde o primeiro poema, que inaugura,
liricamente (“não chega até o gesto / o pássaro da tua voz”), a coletânea,
itinerário de um novo Prometeu, condenado ao castigo dos dias (“a carne exausta
carrega / o relógio ao cume”) e que busca a salvação pela poesia (“falta motivo
para ficar // em pé: falta a cabeça / para tocar as nuvens”). Em Nervura, cada palavra é escolhida com
zelo, como um pintor define as suas cores, o que resulta em poemas de ritmo
expressivo (“Vísceras” é um bom exemplo), força e coerência. A poesia de Orfeu
vem de dentro: a tensão dos nervos e dos ossos convive com mãos que descem à
terra e plantam ou então esculpem nervuras na pele (“entre semelhanças /
caminha / livre / pisando / as feridas / que reluzem / ao / sol”). A realidade
mais dura não escapa à viagem. Assim, “ao corte na cana / assemelha-se / o
corte na carne” e se “colhem nos nervos do algodão / a manufatura das
mortes”. O poeta soube dar “boca / e
caninos / ao grito” de suas inquietações e libertar a poesia que lhe “foge /
pelos / olhos”.
Nervura, de Carlos Orfeu, Editora Patuá, 2019, 105 páginas
DEUS É UMA CICATRIZ
ABANDONADA NA CARNE
I
deus é uma cicatriz
abandonada na carne
deus é o que se recria
no verbo na origem da
fala
deus
desgovernado movimento
condenado ao retorno e
precipício
II
o sol singra na língua
labaredas logos
na carne do último
deus
a boca incendiada
III
deuses suicidas
cavalgam nos
intestinos da lama
sussurram nas guelras
do abismo
o tempo algoz
dessa imensurável ferida
cosem preces
IV
o mito se contorce
rasteja
de chaga em chaga
move-se espectral na
carne
no que sobrevive
partido
para ser dito
ou esquecido
O autor: Carlos Orfeu
nasceu em Queimados. É devoto das artes, sobretudo, da literatura e da poesia.
Publica em blogs pessoais, revistas e blogs literários. Em 2017 lançou o livro Invisíveis cotidianos (Editora
Literacidade).
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