domingo, 18 de agosto de 2019

REGISTROS. NERVURA. CARLOS ORFEU. O ITINERÁRIO DE UM NOVO PROMETEU




Nervura (Editora Patuá, 2019), novo livro de poemas de Carlos Orfeu, é um belo presente. Com sua linguagem precisa, o poeta não se curva a construções limitadamente cerebrais. Há emoção desde o primeiro poema, que inaugura, liricamente (“não chega até o gesto / o pássaro da tua voz”), a coletânea, itinerário de um novo Prometeu, condenado ao castigo dos dias (“a carne exausta carrega / o relógio ao cume”) e que busca a salvação pela poesia (“falta motivo para ficar // em pé: falta a cabeça / para tocar as nuvens”). Em Nervura, cada palavra é escolhida com zelo, como um pintor define as suas cores, o que resulta em poemas de ritmo expressivo (“Vísceras” é um bom exemplo), força e coerência. A poesia de Orfeu vem de dentro: a tensão dos nervos e dos ossos convive com mãos que descem à terra e plantam ou então esculpem nervuras na pele (“entre semelhanças / caminha / livre / pisando / as feridas / que reluzem / ao / sol”). A realidade mais dura não escapa à viagem. Assim, “ao corte na cana / assemelha-se / o corte na carne” e se “colhem nos nervos do algodão / a manufatura das mortes”.  O poeta soube dar “boca / e caninos / ao grito” de suas inquietações e libertar a poesia que lhe “foge / pelos / olhos”.


Nervura, de Carlos Orfeu, Editora Patuá, 2019, 105 páginas



DEUS É UMA CICATRIZ ABANDONADA NA CARNE

I
deus é uma cicatriz
abandonada na carne

deus é o que se recria
no verbo na origem da fala

deus
desgovernado movimento
condenado ao retorno e precipício


II
o sol singra na língua
labaredas logos

na carne do último deus
a boca incendiada


III
deuses suicidas
cavalgam nos intestinos da lama

sussurram nas guelras do abismo
o tempo algoz

dessa imensurável ferida
cosem preces


IV
o mito se contorce
rasteja
de chaga em chaga

move-se espectral na carne

no que sobrevive partido
para ser dito
ou esquecido




O autor: Carlos Orfeu nasceu em Queimados. É devoto das artes, sobretudo, da literatura e da poesia. Publica em blogs pessoais, revistas e blogs literários. Em 2017 lançou o livro Invisíveis cotidianos (Editora Literacidade).

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