A Geografia particular (Cas’a’screver, 2017) de Inês Campos vem
cartografada em livro-objeto precioso, merecedor dos colecionadores do gênero.
Cada detalhe foi muito bem pensado para o prazer dos olhos e das mãos: projeto
gráfico, belas ilustrações, toda a edição. O impacto estético, no entanto, não nubla
o valor literário da obra, que é manifesto. O livro está dividido em duas
partes: pequeno guia de viagem e outros sítios.
A primeira delas traz
epígrafe de Sophia de Mello Breyner Andresen e anuncia que o roteiro de poemas é
“parte de um tempo respirado”. Na
segunda, Marguerite Duras faz a introdução, indagando, neste mundo “onde moram os outros”, “que margem é aquela?”. Começamos a
leitura e, já de pronto, encontramos um diagnóstico da palavra, este signo que
é, ao mesmo tempo, o cinzel e a pedra do poeta:
SICÍLIA
são as palavras
aquelas guardadas
ou as outras
ditas aos solavancos
fugidias
são os silêncios
que permanecem
templos antigos
mal restaurados
é a grama
que cresce
ao redor
em cima
dentro
O desamparo do mundo
atual é antecipado por Inês. “O café já
tem 12 horas / o nescafé, 12 anos”: a idade do café, de certo modo, contabiliza
a sucessão de incidentes que nos faz o que somos. A linguagem é
estrategicamente coloquial (como convém), trazendo, no entanto, construções ímpares,
contemporâneas e de grande efeito. Nos poemas que partem dessa opção, a primeira
pessoa do singular é usada com arte, sem levar ao efeito banal de um diário ou de
confissões íntimas e desinteressantes. O eu-lírico é universal.
FIESOLE
encontro com as
pedras
etruscas, romanas, lombardas
de pronto
fica evidente o meu não
pertencimento
ainda assim
não me negam
asilo
postas umas sobre as outras
deixam que eu me deite
e cerre a minha boca
Nesse roteiro poético,
a ressignificação da geografia recebe tratamento peculiar e irônico (enquanto
técnica), como se vê nos versos que dizem do Rio de Janeiro (“aquelas alegrias assustadoras / alegrias
vermelhas / de ninguém / tiram férias por aqui”). O arrebatamento e o
desencorajar-se são pintados sob esse olhar, com quebras de ótimo efeito.
TRÁS-OS-MONTES
Apesar disso
o sol se esparramou
atrás dos montes
em algum momento
comovida pela urgência
sacudi minhas penas
e ameacei
um voo
esqueci: ninguém voa assim
impunemente
então guardei minhas asas
fechei as janelas
e liguei a TV
A viagem que o
eu-lírico empreende por lugares fundados no mais íntimo sempre parece retornar
a uma Minas mítica e redentora. Assim é em FORTALEZA (“... vou à praia escondida / mas sempre desisto / e clamo por minas /
onde desnudo meus membros / meu sorriso / e minha palavra // nas montanhas /
elas conhecem outros esconderijos”). Ou em RIO-SANTOS (“o mar não me afoga / não se importa / pelo
mar eu passo // em minas, não: / tudo é areia movediça / tudo é galho / tudo
está para ser escalado”).
Os mergulhos e as
imersões dos poemas não evitam confrontos com a realidade. Repito: não a
realidade biográfica da poeta, mas os incômodos que chegam a qualquer leitor (“desisto só um pouquinho / hoje é domingo /
talvez depois / eu me retome”). Questões que, muitas vezes, o conforto (ou
a covardia) prefere manter sob o tapete. O “para quê” de todos nós é
representado de maneira singular. Queiramos ou não, “é o medo de novo / retornando das férias”.
SÃO PAULO DOS NÁUFRAGOS
Checar os monstros do armário
o tigre debaixo da cama
os pés bem guardados
a estratégia para a fuga
as perguntas arquivadas
e a capa da invisibilidade
Se poesia é dicção, é
o distender da linguagem, Inês demonstra grande domínio de seu ofício de poeta
quando prefere os poemas curtos, a expressão tão enxuta quanto provocadora.
PARIS
não é por nada
nem por ninguém
mas porque a sensação de não pertencer é insuportável
ou
porque a solidão se desenha inteira
triunfando sobre passeios e arcos
ou em quartos de van goghs
A poesia de Inês
Campos se reconhece na visão da água que invade todos os excessos de nosso
estranho habitat, que não chegamos a compreender bem. É pegar o que se parece
com o nada, cada palavra escorrendo líquida, fugidia, limo sobre as pedras do
rio. Aquela ironia Drummondiana, ressurgindo, aqui e ali (como em QUERENÇA), a poesia também se colocando contra a morte.
NATUREZA MORTA
Devoro as maçãs – todas –
as podres, murchas
as que ainda nem brotaram
que me importa o gosto?
Ocupo-me e só
a poesia abandonada
desiste
maçãs milagrosas:
despistam a morte
Nesse itinerário de
surpresas, “a necessidade / de silêncio
para a pesca / de soltar os pequenos / e de lançar o anzol / um pouco mais
distante”. A tábua da salvação é levada pelas correntes para um novo lugar,
melhor. A incompreensão se encolhe e as pedras já não se devotam ao tropeço,
mas são marcos de um caminho reconhecido e enriquecedor. A outra margem deixa
de ser uma descoberta. Está ali, de novo, para ser vencida.
Geografia particular,
de Inês Campos, Cas’a’screver, 2017, 100 páginas.
A autora: Inês Campos
nasceu em Belo Horizonte, onde vive ainda hoje. É poeta e advogada. Geografia particular é seu primeiro
livro, publicado em 2017, pela editora Cas’a’screver. Possui poemas publicados
em revistas eletrônicas. Atualmente trabalha na finalização de seu segundo
livro.
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