domingo, 25 de agosto de 2019

REGISTROS. GEOGRAFIA PARTICULAR. INÊS CAMPOS. A OUTRA MARGEM ESTÁ ALI PARA SER VENCIDA




A Geografia particular (Cas’a’screver, 2017) de Inês Campos vem cartografada em livro-objeto precioso, merecedor dos colecionadores do gênero. Cada detalhe foi muito bem pensado para o prazer dos olhos e das mãos: projeto gráfico, belas ilustrações, toda a edição. O impacto estético, no entanto, não nubla o valor literário da obra, que é manifesto. O livro está dividido em duas partes: pequeno guia de viagem e outros sítios.

A primeira delas traz epígrafe de Sophia de Mello Breyner Andresen e anuncia que o roteiro de poemas é “parte de um tempo respirado”. Na segunda, Marguerite Duras faz a introdução, indagando, neste mundo “onde moram os outros”, “que margem é aquela?”. Começamos a leitura e, já de pronto, encontramos um diagnóstico da palavra, este signo que é, ao mesmo tempo, o cinzel e a pedra do poeta:

SICÍLIA

são as palavras
aquelas guardadas
ou as outras
ditas aos solavancos
fugidias

são os silêncios
que permanecem
templos antigos
mal restaurados

é a grama
que cresce
ao redor
em cima
dentro

O desamparo do mundo atual é antecipado por Inês. “O café já tem 12 horas / o nescafé, 12 anos”: a idade do café, de certo modo, contabiliza a sucessão de incidentes que nos faz o que somos. A linguagem é estrategicamente coloquial (como convém), trazendo, no entanto, construções ímpares, contemporâneas e de grande efeito. Nos poemas que partem dessa opção, a primeira pessoa do singular é usada com arte, sem levar ao efeito banal de um diário ou de confissões íntimas e desinteressantes. O eu-lírico é universal.

FIESOLE

encontro com as
pedras
etruscas, romanas, lombardas

de pronto
fica evidente o meu não
pertencimento

ainda assim
não me negam
asilo

postas umas sobre as outras
deixam que eu me deite
e cerre a minha boca

Nesse roteiro poético, a ressignificação da geografia recebe tratamento peculiar e irônico (enquanto técnica), como se vê nos versos que dizem do Rio de Janeiro (“aquelas alegrias assustadoras / alegrias vermelhas / de ninguém / tiram férias por aqui”). O arrebatamento e o desencorajar-se são pintados sob esse olhar, com quebras de ótimo efeito.

TRÁS-OS-MONTES

Apesar disso
o sol se esparramou
atrás dos montes

em algum momento
comovida pela urgência
sacudi minhas penas
e ameacei
um voo

esqueci: ninguém voa assim
impunemente

então guardei minhas asas
fechei as janelas
e liguei a TV

A viagem que o eu-lírico empreende por lugares fundados no mais íntimo sempre parece retornar a uma Minas mítica e redentora. Assim é em FORTALEZA (“... vou à praia escondida / mas sempre desisto / e clamo por minas / onde desnudo meus membros / meu sorriso / e minha palavra // nas montanhas / elas conhecem outros esconderijos”). Ou em RIO-SANTOS (“o mar não me afoga / não se importa / pelo mar eu passo // em minas, não: / tudo é areia movediça / tudo é galho / tudo está para ser escalado”).

Os mergulhos e as imersões dos poemas não evitam confrontos com a realidade. Repito: não a realidade biográfica da poeta, mas os incômodos que chegam a qualquer leitor (“desisto só um pouquinho / hoje é domingo / talvez depois / eu me retome”). Questões que, muitas vezes, o conforto (ou a covardia) prefere manter sob o tapete. O “para quê” de todos nós é representado de maneira singular. Queiramos ou não, “é o medo de novo / retornando das férias”.

SÃO PAULO DOS NÁUFRAGOS

Checar os monstros do armário
o tigre debaixo da cama
os pés bem guardados

a estratégia para a fuga
as perguntas arquivadas
e a capa da invisibilidade

Se poesia é dicção, é o distender da linguagem, Inês demonstra grande domínio de seu ofício de poeta quando prefere os poemas curtos, a expressão tão enxuta quanto provocadora.

PARIS

não é por nada
nem por ninguém
mas porque a sensação de não pertencer é insuportável

ou

porque a solidão se desenha inteira
triunfando sobre passeios e arcos
ou em quartos de van goghs

A poesia de Inês Campos se reconhece na visão da água que invade todos os excessos de nosso estranho habitat, que não chegamos a compreender bem. É pegar o que se parece com o nada, cada palavra escorrendo líquida, fugidia, limo sobre as pedras do rio. Aquela ironia Drummondiana, ressurgindo, aqui e ali (como em QUERENÇA), a  poesia também se colocando contra a morte.

NATUREZA MORTA

Devoro as maçãs – todas –
as podres, murchas
as que ainda nem brotaram

que me importa o gosto?
Ocupo-me e só

a poesia abandonada
desiste
maçãs milagrosas:

despistam a morte

Nesse itinerário de surpresas, “a necessidade / de silêncio para a pesca / de soltar os pequenos / e de lançar o anzol / um pouco mais distante”. A tábua da salvação é levada pelas correntes para um novo lugar, melhor. A incompreensão se encolhe e as pedras já não se devotam ao tropeço, mas são marcos de um caminho reconhecido e enriquecedor. A outra margem deixa de ser uma descoberta. Está ali, de novo, para ser vencida.


Geografia particular, de Inês Campos, Cas’a’screver, 2017, 100 páginas.




A autora: Inês Campos nasceu em Belo Horizonte, onde vive ainda hoje. É poeta e advogada. Geografia particular é seu primeiro livro, publicado em 2017, pela editora Cas’a’screver. Possui poemas publicados em revistas eletrônicas. Atualmente trabalha na finalização de seu segundo livro.

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