domingo, 18 de agosto de 2019

REGISTROS. A SERENIDADE DO ZERO. ALEXANDRA VIEIRA DE ALMEIDA. UM ZERO QUE SE ENCHE DE VERBO




Termino de ler A serenidade do zero (Penalux, 2017), de Alexandra Vieira de Almeida. Quem a conhece das belas resenhas também sabe da extrema cultura e do fácil manejo das palavras. Neste seu livro, como no poema “Desimaginar”, “Quanta imaginação em escrever o poema exato / em sua dinâmica de “chiaroscuro” / equilibrando as potências do universo”. A icônica poeta Lina Tâmega Peixoto, a quem vejo lindamente homenageada no poema “A morte do centauro”, ensinou-me que determinadas palavras revelam a essência de uma obra. Aqui, a partir de um zero primordial, sereno, silencioso, a poesia oferece ressignificações, “Um elétrico transe”, e ascende ao sol, que “se enche de verbo”. Nenhuma superficialidade – e o leitor, “peixe fora do aquário”, segue provocado (“transcendências não existem”) com questionamentos que vão para além do humano (“Ou Deus é o próprio vazio que o homem não comporta?”). Como não poderia deixar de ser, Alexandra aceita “o combate” e “as barricadas estão prontas”. Linda edição de Wilson Gorj e Tonho França.


A serenidade do zero, de Alexandra Vieira de Almeida, Editora Penalux, 2017, 99 páginas



A MORTE DO CENTAURO

Para Lina Tâmega Peixoto

No lago, um golpe de machado
Feito de céu e terra
ele se fragmenta em dois
fazendo suas partes desiguais
voltarem aos seus originais habitats
Metade água, metade fogo
o homem tenta construir em vão um centauro de argila
querendo imitar a sua complacência de animal espiritual
Sabedoria dos anos, em sua natureza plena
derrama o sangue vivo dos ensinamentos
acumulados como livros de mistérios
Em seu último gemido, deixa o grito se escoar pelas águas
levando da constância o caminho para o vazio
De terra, de céu, de fogo e de água
os homens e os centauros se igualam no seu vazio inaugural
Após aquela ceia de morte, a vida e a morte se igualam
Não há nada que limpe aquela mancha na terra
Só resta ao homem ultrapassar o sangue e a própria morte
que o centauro deixara ali como lembrança de vida.


ALFABETO TRANSCENDENTAL

Para Raquel Naveira

Um alfabeto que silencia a escrita
Que faz das letras um atalho para uma estrada esburacada
No meio da lama, encontro uma joia de medos
O medo insípido da humanidade
Em soletrar um alfabeto de cemitérios
Busco a transcendência das formas das letras
Suas sobrevidas, seus fantasmas
As palavras se inauguram na sua disformidade
Não na sua incumbência de levar a outro signo
Que não os signos das estrelas
As letras do alfabeto desencarnadas da vida
Não se fazem corpo de memórias
Mas batismo de espíritos translúcidos
Nas águas da unidade em meio a qualquer diferença enganosa
A comunhão dos signos
Se faz pela hóstia do silêncio
Que traduz o que a boca não vê
Transcendência de nomes
No papel mágico da vida.


A FRAGILIDADE DO ESTAR

A fragilidade do estar
do sentir a pele à beira do abismo
Ser ou estar?
Estar é uma dor do tempo
na inconstância das janelas fechadas
Não ser é a vastidão do infinito
no brinquedo da desrazão
A fragilidade
tem que se tornar uma força
na contagem dos zeros
multiplicados em versos
Poemas que não se deixam
entreter pela razão do mérito
O esvaziamento das caixas
abarrotadas de sentidos
Proliferação de vespas
que ferem o escudo do mundo
Frágil, o homem
construirá uma fortaleza de errância
vagando no descaminho da luz e da sombra.



A autora: Alexandra Vieira de Almeida é poeta, contista, cronista, resenhista e ensaísta. Tem Doutorado em Literatura Comparada (UERJ).Trabalha como professora na Secretaria do Estado de Educação (SEEDUC) e tutora de ensino superior a distância (UFF). Tem cinco livros de poemas publicados, sendo o mais recente A serenidade do zero (Penalux, 2017). Tem poemas publicados em antologias, revistas, jornais e alternativos por todo o país e também no exterior. Seus poemas foram traduzidos para vários idiomas.



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