domingo, 18 de agosto de 2019

REGISTROS. SE / O QUE EU VI. ANDRÉ CARAMURU AUBERT. COMO SE UM YANGTZÉ CORTASSE SÃO PAULO




Com as influências de poetas da estirpe de William Carlos Williams, Wallace Stevens, Kenneth Rexroth, Donald Hall e W.S. Merwin, André Caramuru Aubert compôs o belo Se / o que eu vi, coletânea de poemas que ainda traz tinturas da poesia chinesa clássica, ao preferir a insinuação da prosa e referências ao campo, à natureza, que o poeta transplanta à urbe, como se um Yangtzé cortasse São Paulo. O título já encaminha aos quadros-poemas (quadros retratam momentos e os fixam), nos quais as memórias (o verbo lembrar é reiterado) sintetizam a perplexidade diante da rapidez da vida, da finitude. Talvez o mais sedutor dos livros de poesia de André, cujo trabalho, dialogando com a poesia contemporânea americana, escapa ao mainstream lusófono. O primeiro poema, “Se”, é um anzol, fisga desde logo o leitor: “como se a cada manhã, / a cada novo dia, o fim, / um fim horrendo, cruel e sujo, / um verdadeiro apocalipse, enfim / (você me entende?), / fosse uma possibilidade bastante real / e concreta”. Leitura e tanto.

Se / o que eu vi, de André Caramuru Aubert, Editora Patuá, 2019, 94 páginas.

21:38

sentada no ponto de ônibus uma
mulher, sozinha, mexe no celular. na
esquina, um catador de lixo dobra caixas
de papelão para empilhar na carroça. a luz
branca do poste atravessa as folhas da sibipiruna,
salpicando o asfalto de manchas quase claras.

sabem ser bem tristes, às vezes,
as noites de são paulo.

AINDA

ainda estava vivo, ele podia
sentir. ainda sentia. o vento,
os sons, algumas cores, alguns
odores, a chuva. a náusea,
principalmente a náusea. mas tudo
passava tão ligeiro. tudo era
tão confuso. o que havia sido, o que
estava sendo. os sons não
explicavam, ninguém explicava,
ele ainda.

UMA MONTANHA

uma folha em branco, uma
caneta. eu invento uma montanha. com
profundidade, cores e tons.
com nuvens ao fundo, vento e sons.
com pássaros, árvores e mamíferos.
com moscas também, e aranhas.
uma montanha. uma folha em branco,
uma caneta.
eu inventei uma montanha.




O autor: André Caramuru Aubert, bacharel e mestre em História pela USP, é colaborador do jornal Rascunho, para o qual seleciona e traduz, todos os meses, os poemas de algum poeta estrangeiro. Tem publicados três livros de poemas: Outubro / Dezembro, As cores refletidas nas lentes dos seus óculos escuros e Se o que eu vi, todos pela Editora Patuá; e cinco romances, entre os quais A cultura dos Sambaquis, pela Descaminhos, e Poesia Chinesa, pela  SESI-SP editora. Como parte de sua dissertação de mestrado, traduziu o Diário de um desesperado, escrito por Fritz Reck, um opositor ao nazismo morto nos últimos meses da II Guerra, que saiu publicado pela Sesi-SP editora, para a qual também traduziu, entre outras obras, o livro de contos Areias Movediças, de Octavio Paz. Atualmente trabalha em seu novo romance, Estevão, além de coordenar as edições brasileiras do inventor dos quadrinhos, Rodolphe Töpffer, dos quais os cinco primeiros, Monsieur Jabot (1833), História de Monsieur Cryptogame (1845) e Monsieur Trictrac (1830), Monsieur Vieux Bois (1837) e Monsieur Crépin (1837) já saíram pela SESI-SP editora.



  



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