quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Três poemas de Cinthia Kriemler







Um dia seremos tudo isso

um dia faremos silêncio
seremos pausa como as coisas gêmeas colocadas
sobre as mesas de centro, sobre as estantes altas em salas
nobres e intocadas. pares perfeitos, banhados pelo sol que escapa
pela fresta da persiana discreta
seremos para sempre mudos
inertes
parelhos e empoeirados como as matrioskas
os elefantes os macacos os candelabros de prata
teremos esquecido como é amar — esse praticar de infinitos
em pequenos gestos
e não saberemos dizer qual foi o instante
em que cessaram riso, abraço, murmúrio ou o toque das nossas
mãos entre as cobertas felpudas, ou os códigos trocados
por nossos olhos treinados em acender vontades
teremos rasgado cartas
e escondido fotos amarelecidas no fundo
das gavetas de uma cômoda velha, e derramado na pia
os nossos vidros de perfume prediletos, e empurrado
goela abaixo a cumplicidade de uma vodca gelada
seremos choro e choro
: o que escorre sem controle : o que molha só a alma.
um dia seremos tudo isso

Lama sobre tela

Nas garras do tempo escoado
o graveto seco das décadas
não sustenta mais ninhos

Os olhos expressionistas de
Van Gogh
devoram a indigência

Mais que as batatas.




Mea culpa, mea maxima culpa

Eu te ponho no colo, te dou um gole d’água, um pouco de carinho.
Pouco, porque em mim já resta quase nenhum. Mas o que eu tenho é teu.
Toma.
Eu limpo a tua ferida, abraço teu abandono, vazo por dentro um rio
de choro, mas te entrego um sorriso. Que te acalme, te conforte, te acalente.
Que te aqueça. Ponho um pano de lã ou de algodão sobre o teu corpo
minúsculo de vida, gigante de dores. E canto em desafino uma cantiga
de ninar que não foi feita para ti, mas que embalou meus filhos
: aqueles que dormem sob um teto firme.
Eu te dou um pão, um doce, um prato quente de sopa. Qualquer coisa
que te faça abrir de novo os olhos.
E curo as tuas feridas com algodões e gazes e iodos e um beijo
e um sopro (como mamãe fazia). Peço desculpas, mesmo sabendo
que isso não serve de nada para nenhum de nós. Digo que amanhã
tudo vai mudar.
Mas tu me perguntas no silêncio dos nossos olhares trocados
Por que não agora? Por que não hoje? Por que não ontem
quando ainda havia crença e vida?
Eu fecho a tampa do teu caixão. Estão sobre as minhas todas as mãos
que te esqueceram nas esquinas, nas balsas, nos lixões, nas camas de sexo
dos pedófilos, nos acampamentos, nos bombardeios, no fundo do mar gelado
, nos escombros dos desmoronamentos.

As minhas mãos omissas                    ]e todas essas mãos[
estão banhadas em enxofre e fogo.




Cinthia Kriemler é carioca e mora em Brasília. Autora, pela Editora Patuá, de Tudo que morde pede socorro (Romance, 2019); Exercício de leitura de mulheres loucas (Poesia, 2018); Todos os abismos convidam para um mergulho (Romance, 2017) – finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018; Na escuridão não existe cor-de-rosa (Contos, 2015) – semifinalista do Prêmio Oceanos 2016; Sob os escombros (Contos, 2014); e Do todo que me cerca (Crônicas, 2012). Organizou a antologia de contos Novena para pecar em paz (Editora Penalux, 2017) e participa de diversas antologias de contos e de poesia. Tem textos e poemas publicados em: Gazeta de Poesia Inédita, TriploV, Revista Gueto, Revista InComunidade, Revista SAMIZDAT, Literatura&Fechadura, Mallarmargens, Germina, LiteraturaBr, Escritoras suicidas, Diversos afins, Revista Philos. É colaboradora da revista Os Imaginários.



Imagens: Google



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