quarta-feira, 29 de agosto de 2012

diário das horas

I


batem duas vezes à porta e minha disposição em abri-la é tão miúda quanto a certeza de que sobreviverei a mais um processo de desconstrução. não quero coadjuvantes. minha dor é egoísta. solitária. aguda.

e de dor eu entendo como ninguém.


II

sou mulher de prantos.
choro por tudo e nada. e o nada tem sido bem mais que tudo. choro manso para despistar os demônios. choro baixo para enganar meus fantasmas. ninguém desconfia de nada. e o mundo segue - presumivelmente - feliz.
sem mim.


III

sinto faltas essenciais: de algum amor, de alguma paixão, de algum sexo. e de tempestades. o que antes era profuso agora é reto. e esta linearidade me apavora. não estou preparada para viver em calma perpétua. quase morta.
ainda não.


IV

passei metade da vida levantando bandeiras e tentando compreender meus abismos. passei a vida inteira carpindo a dor alheia e perdendo meus sonhos em qualquer lugar.
logo eu, que nunca soube advogar em causa própria, apostei todas as fichas no mesmo jogo.
e perdi.


V

confesso que fui muitas sem ser nenhuma. confesso que me apaixonei demais e amei de menos. confesso que não me lembro de alguns cheiros. de algumas carícias. e do meu primeiro beijo.

(...)



VI


entre meus dedos, o terço - presença física de minhas crenças - queima. ando esquecida dos mandamentos. e já não sei onde foi parar meu último pecado. aquele do qual nunca me arrependi.
a imagem da Virgem me enxerga, entende e consola.
ah!, Senhora, estou nua. tem piedade de mim.


VII

foi por minha conta e calculado risco que me meti em claustro (mais uma vez) e calei a boca (mais uma vez).
batem novamente à porta. (estou assustada). do lado de lá esperam pela mulher de sempre. pelo riso fácil. pela boca pródiga em contar histórias.
do lado de lá esperam por respostas que não tenho.
nem pra mim.




mariza lourenço


[imagem ©Alina Kurysheva]

7 comentários:

  1. Adorei Mariza! a linearidade... em algum momento ela chega e assusta mesmo!

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  2. Prosa mais do que poética, um desabafo existencial construido em fragmentos. "passei metade da vida levantando bandeiras e tentando compreender meus abismos. passei a vida inteira carpindo a dor alheia e perdendo meus sonhos em qualquer lugar."

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  3. "sinto faltas essenciais: de algum amor, de alguma paixão, de algum sexo. e de tempestades. o que antes era profuso agora é reto. e esta linearidade me apavora. não estou preparada para viver em calma perpétua. quase morta.
    ainda não." é isso que faz da prosa poética a musa mór.

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  4. Viva! Minha contista predileta! Sua comédia humana me humaniza com jeito e graça!

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  5. "e de dor eu entendo como ninguém". e de contos entende como ninguém!

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